Artigo publicado na Revista
Critério
Resumo
Ao longo dos dois últimos séculos, o homem foi
capaz de erigir regimes pautados no terror e no genocídio, bem como um modelo
de homem pré-determinado por uma dada ordenação social e jurídica. Em última
instância, o que se tem, com efeito, é um caráter totalmente artificial do que
seja a igualdade entre os homens, visto que estes acabam sendo reduzidos, tanto
pelo Direito quanto pela política, a 'meros integrantes da espécie humana'. Tal
fato, provavelmente, justifica o extermínio nos diferentes regimes
totalitários, e isto porque reduzem o homem à mínima porção que este possa ter,
privando-o, destarte, de todo e qualquer direito, até mesmo o da própria vida.
Assim, faz-se mister problematizar as questões inerentes a uma filosofia
política e a uma ética capazes de abarcar não apenas os problemas que concernem
a estes conceitos tradicionais, mas antes, àqueles que 'transvaloram' e buscam
construir novas perspectivas no âmbito político, resgatando a política como um
conceito filosófico constitutivo da conditio humanæ. Ora, é a partir de
uma problemática apontada por Michel Foucault - o biopoder e racismo, suas
funções e áreas de aplicação -, que se verifica a necessidade de um diálogo
entre pensadores contemporâneos os quais, utilizando-se ou não do termo
'biopoder', comparticipam da mesma questão. Ademais, cabe salientar o fato de
que a sociedade contemporânea emerge como um ponto de aplicação das intervenções
governamentais, bem como sua política se estrutura na formalização de duas
faces de um mesmo fenômeno, a saber: uma sociedade que, por um lado, aparece
empreendedora e, por outro, erige-se em bases judiciárias. Tal postura,
decerto, enuncia a existência de um Estado ambíguo que, na 'intenção' de
preservar liberdade e igualdade, irrompe como um 'estado de exceção', coibindo
ações as quais não se encontrem em conformidade com uma certa construção de
'mundo comum'. Nesse sentido, o presente trabalho pretende apontar para as
razões pelas quais a filosofia, imbuída de um caráter legal, acata não apenas o
extermínio do outro, mas antes, sua necessidade lógica. Ou seja, através de
autores como Foucault, Agamben, Arendt e Camus, compreender que a
característica da era contemporânea consiste no crime efetuado pela razão, haja
vista que o assassinato moderno necessita de toda uma operação logística para
ser efetuado; apontando, desse modo, para o fato de, na sociedade
contemporânea, existir uma justificativa, tanto jurídica quanto filosófica,
para a implementação do genocídio, visto que aquele a quem desejo matar não
pertence ao meu conceito de homem. A exemplo disso, vê-se, no nazismo, os
crimes contra os judeus, ciganos e Testemunhas de Jeová, dentre outros grupos. Todavia,
cabe ressalvar, há ainda outros exemplos que, mesmo apresentando-se menos
explícitos, são, na verdade, tão cruéis e legítimos quanto os acima citados. O
presente trabalho, portanto, visa à compreensão do problema da definição do que
seja o homem na contemporaneidade, e do que seja sua 'natureza'; afinal, esta
se encontra relacionada a um caráter artificial que imputa à condição humana
uma determinada política e ordenação cultural.
Palavras-chave: Liberdade; igualdade; biopoder;
biopolítica; condição humana.
O ato de matar a individualidade do homem, de destruir a sua singularidade, fruto da natureza, da vontade e do destino, condição de todas as relações humanas, cria um horror que de longe ultrapassa a ofensa da pessoa político-jurídica e o desespero da pessoa moral [...]. O terror [...] não é o bem estar dos homens nem o interesse de um homem, mas a fabricação da humanidade, elimina os indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as "partes" em benefício do "todo" 1
É fato que a sociedade contemporânea emerge como um
ponto de aplicação das intervenções governamentais, bem como é fato que sua
política se estrutura na formalização de duas faces de um mesmo fenômeno -
advindos da Revolução Francesa -, a saber: de uma sociedade que, por um lado,
aparece empreendedora e, por outro, erige-se em bases judiciárias. Tendo isso
em vista, faz-se mister salientar a relevância de se apontar para questões que
marcaram e ainda marcam a esfera filosófico-política, da qual o homem,
principalmente no último século, se tornou, de modo sui generis,
partícipe. Ora, o que se verifica ao longo dos dois últimos séculos é a
construção de regimes pautados no terror e no genocídio, bem como a
institucionalização de um modelo de homem pré-determinado por uma prévia
ordenação científico/social e jurídica. Em última instância, o que se tem, com
efeito, é um caráter totalmente artificial do que seja a igualdade entre os
homens, visto que estes acabam sendo reduzidos, tanto pelo Direito quanto pela
política e ciência, a 'meros integrantes da espécie humana'. Em outras
palavras, o pensamento filosófico-político contemporâneo é marcado por uma
relação complexa, a saber: a sobreposição da vida em relação à política. Neste
compasso, alguns conceitos acabam se entrelaçando e adquirindo contornos dantes
distintos, seguindo-se daí que as relações entre poder, violência e força
passam a configurar uma esfera comum, perdendo suas definições originárias, e
tornando-se, destarte, sinonimizadas. Tal sinonimização gera, por conseguinte,
uma inversão entre o concebido como pré-político e o político;
subseqüentemente, estabelece-se uma relação necessária entre a esfera do bios
e a da política.
Como ressalta Arendt, a esfera da bios e a esfera da política não estão em contigüidade, uma vez que a elas correspondem, respectivamente, os domínios da necessidade e da liberdade: "os filósofos gregos não duvidaram de que a liberdade se localiza exclusivamente na esfera política, e que a necessidade (bios) é de maneira fundamental um fenômeno pré-político". Donde as relações de força e violência se justificarem apenas na esfera pré-política, visto constituírem os meios para dominar a necessidade e, conseqüentemente, fazer do homem um ente livre, de modo a inseri-lo no âmbito da 'vida política'. Ou seja, o âmbito do político e o da vida irrompem, na gênese do pensamento filosófico, como categorias separadas, haja vista que o homem, seja apenas como ser-vivente ou como déspota (apenas vinculado ao oikos), não está inserido na esfera pública, isto é, no lócus comum a outros homens, de tal modo que possa, na ação enquanto diálogo, ser partícipe dos negócios públicos. Contudo, a partir do final da Modernidade (século XVIII e início do XIX), com a primazia do Jurídico no estabelecimento das estruturas soberanas e dos Estados, um outro conceito clássico grego de vida, 'zoé' - o viver comum a todos os seres vivos -, emerge, tal qual destacado por Agamben, como condição sine qua non na distinção entre a 'vida com valor' e a 'vida desprovida de valor'. Aponta-se, portanto, para o fato de haver "um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta, sem que se cometa homicídio" 2.
Com efeito, tais observações visam a demonstrar que o mundo, a partir do fim da Modernidade, erige de uma identificação e de uma sobreposição do bios em relação à esfera política. A vida, bem como os domínios do corpo, isto é, o bios, que antes faziam parte da esfera pré-política, transformaram-se no eixo axial das questões políticas atuais. Ademais, a inclusão da 'vida nua', ou 'vida sacra', isto é, da zoé nos aplicativos jurídicos que sustentam toda uma ordenação governamental ou soberana, gera uma cisão entre dois conceitos dantes interligados: o humanitário e o político.
Ora, conquanto a política, no pensamento filosófico primevo, significa liberdade e ação entre homens, esta doravante tem seu sentido no controle das normas do corpo - fruto da ingerência do jurídico e do científico sobre o político e, consequentemente, deste sobre a significação e validade do bios. Segue-se daí que o paradigma entre aquilo que é definido por normal e anormal, humano e não-humano torna-se o condutor para se compreender as relações políticas, bem como as ordenações jurídicas que a envolvem. O campo do bios, que para os gregos era concebido como um domínio eminentemente privado, passa, agora, a fazer parte da esfera do social e, portanto, do político. Se havia uma raison d'étre da política, esta se vinculava diretamente à liberdade, sendo, por conseguinte, seu domínio de experiência, a ação. Tal raison d'étre, contudo, ganha um novo sentido, em face de um novo domínio entrar em cena, o do bios e, com ele, um novo conceito, o de biopolítica. Donde poder-se afirmar que, neste momento específico, vige a ambigüidade deste processo complexo. Afinal, se por um lado há quem justifique uma positividade dessa biopolítica, por outro, existe um lado obscuro desse mesmo processo, haja vista que há uma crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do poder. Consoante Foucault, "o homem moderno [aparece] como um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente" 3. Ademais, a afirmação da biopolítica implica o deslocamento e a ampliação da deliberação sobre a morte. E isso em razão de ter o soberano, o chefe de Estado, isto é, o governante se tornado aquele que pauta sua ação em uma linha de movimento, a qual se desloca para uma relação cada vez mais ampla da vida social, de modo a fazê-lo entrar em simbiose íntima com a ciência, com a medicina, com o sacerdócio e com a ação jurídica. Nesse sentido, duas questões cruciais do âmbito filosófico-político, inerentes aos séculos XX e XXI, se entrelaçam, a saber: a política e a vida. E, com elas, a necessidade de se compreender, dentro dos dispositivos do poder, as relações intrínsecas entre biopolítica e domínios totalitários. Donde o trabalho de Arendt e Camus emergirem contiguamente aos de Foucault, ressoando nos textos de Agamben.
Ora, levando-se em consideração a diretriz arendtiana, verifica-se que a conditio humanæ é definida pela ação, isto é, pela vida política e pelo diálogo entre iguais. Assim sendo, o homem é caracterizado por ser um zoon logon ekhon (ser dotado de fala), tendo como contraposto o aneu logou (sem logos), um ente sem participação política. Entrementes, uma vida pautada unicamente na sua característica de "ser vivo" não concede, ao homem, direitos para além dos de vida e morte, visto o indivíduo pertencer unicamente ao âmbito do biológico; encontrando-se circunscrito à condição de 'mero integrante da espécie humana'. Tal fato, consequentemente, gera um problema, haja vista que aludir a uma participação política se torna paradoxal, pois, estando o homem sujeito a determinadas ordenações jurídicas que o impelem ou não à condição de ser humano, tem-se por resultado a ausência de liberdade. Subsequentemente, as "conquistas políticas", dantes perpetradas na esfera pública, passam a ser fundadas, unicamente, ou em uma aceitação passiva ou em mecanismos de violência e coerção, haja vista a privatização da esfera política e, com isso, o 'apartheid' do homem desta mesma esfera, justificando-se, assim, o extermínio de diferentes grupos de indivíduos, em diferentes regimes políticos. Isso, evidentemente, decorre do fato de o homem ser levado à mínima porção que este possa ter, privando-o, destarte, de todo e qualquer direito, até mesmo o da própria vida. Cria-se, desse modo, uma espécie de 'homo hostilis' 4, um animal vicioso e hostil que descumpre com aquilo que lhe é mais próprio, sua dialektiké, a habilidade do discurso e uso persuasivo da palavra. É neste contexto que um dado conceito se delineia aos olhos de Arendt, a saber: o de vigor, esta capacidade singular que aparece como caracterização individual e única. Tal conceito é importante na medida em que este vigor individual pode ser multiplicado pela violência, principalmente com os novos instrumentos técnico-científicos que o elevam exponencialmente. Ora, o que de fato se verifica nas instituições políticas erigidas, a partir do final da Modernidade, não é a manifestação do poder, mas antes, sua institucionalização, mais precisamente jurídica, sob a forma de força coercitiva. A violência não é poder, mas, isto sim, sua negação e, "desse poder de negação não brota o seu oposto [...] a violência não reconstrói dialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila" 5. Em verdade, as instituições consideradas 'políticas', nada mais são que manifestações e materializações do poder. Entrementes,
Como ressalta Arendt, a esfera da bios e a esfera da política não estão em contigüidade, uma vez que a elas correspondem, respectivamente, os domínios da necessidade e da liberdade: "os filósofos gregos não duvidaram de que a liberdade se localiza exclusivamente na esfera política, e que a necessidade (bios) é de maneira fundamental um fenômeno pré-político". Donde as relações de força e violência se justificarem apenas na esfera pré-política, visto constituírem os meios para dominar a necessidade e, conseqüentemente, fazer do homem um ente livre, de modo a inseri-lo no âmbito da 'vida política'. Ou seja, o âmbito do político e o da vida irrompem, na gênese do pensamento filosófico, como categorias separadas, haja vista que o homem, seja apenas como ser-vivente ou como déspota (apenas vinculado ao oikos), não está inserido na esfera pública, isto é, no lócus comum a outros homens, de tal modo que possa, na ação enquanto diálogo, ser partícipe dos negócios públicos. Contudo, a partir do final da Modernidade (século XVIII e início do XIX), com a primazia do Jurídico no estabelecimento das estruturas soberanas e dos Estados, um outro conceito clássico grego de vida, 'zoé' - o viver comum a todos os seres vivos -, emerge, tal qual destacado por Agamben, como condição sine qua non na distinção entre a 'vida com valor' e a 'vida desprovida de valor'. Aponta-se, portanto, para o fato de haver "um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta, sem que se cometa homicídio" 2.
Com efeito, tais observações visam a demonstrar que o mundo, a partir do fim da Modernidade, erige de uma identificação e de uma sobreposição do bios em relação à esfera política. A vida, bem como os domínios do corpo, isto é, o bios, que antes faziam parte da esfera pré-política, transformaram-se no eixo axial das questões políticas atuais. Ademais, a inclusão da 'vida nua', ou 'vida sacra', isto é, da zoé nos aplicativos jurídicos que sustentam toda uma ordenação governamental ou soberana, gera uma cisão entre dois conceitos dantes interligados: o humanitário e o político.
Ora, conquanto a política, no pensamento filosófico primevo, significa liberdade e ação entre homens, esta doravante tem seu sentido no controle das normas do corpo - fruto da ingerência do jurídico e do científico sobre o político e, consequentemente, deste sobre a significação e validade do bios. Segue-se daí que o paradigma entre aquilo que é definido por normal e anormal, humano e não-humano torna-se o condutor para se compreender as relações políticas, bem como as ordenações jurídicas que a envolvem. O campo do bios, que para os gregos era concebido como um domínio eminentemente privado, passa, agora, a fazer parte da esfera do social e, portanto, do político. Se havia uma raison d'étre da política, esta se vinculava diretamente à liberdade, sendo, por conseguinte, seu domínio de experiência, a ação. Tal raison d'étre, contudo, ganha um novo sentido, em face de um novo domínio entrar em cena, o do bios e, com ele, um novo conceito, o de biopolítica. Donde poder-se afirmar que, neste momento específico, vige a ambigüidade deste processo complexo. Afinal, se por um lado há quem justifique uma positividade dessa biopolítica, por outro, existe um lado obscuro desse mesmo processo, haja vista que há uma crescente implicação da vida natural do homem nos mecanismos e cálculos do poder. Consoante Foucault, "o homem moderno [aparece] como um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente" 3. Ademais, a afirmação da biopolítica implica o deslocamento e a ampliação da deliberação sobre a morte. E isso em razão de ter o soberano, o chefe de Estado, isto é, o governante se tornado aquele que pauta sua ação em uma linha de movimento, a qual se desloca para uma relação cada vez mais ampla da vida social, de modo a fazê-lo entrar em simbiose íntima com a ciência, com a medicina, com o sacerdócio e com a ação jurídica. Nesse sentido, duas questões cruciais do âmbito filosófico-político, inerentes aos séculos XX e XXI, se entrelaçam, a saber: a política e a vida. E, com elas, a necessidade de se compreender, dentro dos dispositivos do poder, as relações intrínsecas entre biopolítica e domínios totalitários. Donde o trabalho de Arendt e Camus emergirem contiguamente aos de Foucault, ressoando nos textos de Agamben.
Ora, levando-se em consideração a diretriz arendtiana, verifica-se que a conditio humanæ é definida pela ação, isto é, pela vida política e pelo diálogo entre iguais. Assim sendo, o homem é caracterizado por ser um zoon logon ekhon (ser dotado de fala), tendo como contraposto o aneu logou (sem logos), um ente sem participação política. Entrementes, uma vida pautada unicamente na sua característica de "ser vivo" não concede, ao homem, direitos para além dos de vida e morte, visto o indivíduo pertencer unicamente ao âmbito do biológico; encontrando-se circunscrito à condição de 'mero integrante da espécie humana'. Tal fato, consequentemente, gera um problema, haja vista que aludir a uma participação política se torna paradoxal, pois, estando o homem sujeito a determinadas ordenações jurídicas que o impelem ou não à condição de ser humano, tem-se por resultado a ausência de liberdade. Subsequentemente, as "conquistas políticas", dantes perpetradas na esfera pública, passam a ser fundadas, unicamente, ou em uma aceitação passiva ou em mecanismos de violência e coerção, haja vista a privatização da esfera política e, com isso, o 'apartheid' do homem desta mesma esfera, justificando-se, assim, o extermínio de diferentes grupos de indivíduos, em diferentes regimes políticos. Isso, evidentemente, decorre do fato de o homem ser levado à mínima porção que este possa ter, privando-o, destarte, de todo e qualquer direito, até mesmo o da própria vida. Cria-se, desse modo, uma espécie de 'homo hostilis' 4, um animal vicioso e hostil que descumpre com aquilo que lhe é mais próprio, sua dialektiké, a habilidade do discurso e uso persuasivo da palavra. É neste contexto que um dado conceito se delineia aos olhos de Arendt, a saber: o de vigor, esta capacidade singular que aparece como caracterização individual e única. Tal conceito é importante na medida em que este vigor individual pode ser multiplicado pela violência, principalmente com os novos instrumentos técnico-científicos que o elevam exponencialmente. Ora, o que de fato se verifica nas instituições políticas erigidas, a partir do final da Modernidade, não é a manifestação do poder, mas antes, sua institucionalização, mais precisamente jurídica, sob a forma de força coercitiva. A violência não é poder, mas, isto sim, sua negação e, "desse poder de negação não brota o seu oposto [...] a violência não reconstrói dialeticamente o poder. Paralisa-o e o aniquila" 5. Em verdade, as instituições consideradas 'políticas', nada mais são que manifestações e materializações do poder. Entrementes,
Jamais
existiu governo exclusivamente pautado na violência. Mesmo o domínio totalitário,
cujo principal instrumento de dominação é a tortura, precisa de uma base de
poder. [...] Mesmo a dominação mais despótica que conhecemos, o domínio do
senhor sobre os escravos, que sempre o excederam em número, não se amparava em
meios superiores de coerção enquanto tais, mas em uma organização superior do
poder. [...] Poder é de fato a essência de todo governo, mas não a violência. A
violência é por natureza instrumental 6.
É nesse sentido que toda a estrutura de formação de
Estados Soberanos, desde o século XIX (com exceção da Inglaterra), aparece
erigida a partir de dispositivos legais, nos quais o homem, que antes se
encontrava na inocente posição de súdito, submetido às determinações 'divinas',
passa a inocente defensor de uma justiça revestida de um estatuto ontológico,
sendo por esta também 'amparado'. Todavia, as relações entre soberano,
soberania, poder de direito e poder de fato, irrompem de bases controversas.
Donde toda uma legislação e nomenclatura sócio-política - pautadas e alicerçadas
em uma supremacia científica, verificada no positivismo instaurado no século
XIX - estruturarem-se a partir de uma contigüidade entre o Estado e as suas
relações com os cidadãos, perpetradas com a Constituição de 1792, na França.
Afinal, é neste momento histórico que o homem tem sua caracterização como
partícipe político de uma dada soberania a partir de seu nascimento, deixando
de ser súdito para ser cidadão. E isso de tal modo que se transpassa o termo
nascimento para o de nação. Os direitos, portanto, "são atribuídos ao
homem, somente na medida em que ele é fundamento imediatamente dissipante, do
cidadão" 7.
A Revolução Francesa, assim, insurge como o marco crucial de uma significativa mudança de paradigma, haja vista que, pela primeira vez na história, um rei é morto não para se colocar outro em seu lugar, mas antes, para se destruir um princípio, o do direito divino. Como conseqüência, a busca por um ideário de liberdade acabou engolfada por um espaço político transformado em espaço jurídico, o qual se desenvolveu, posteriormente, nas acepções de Estado-nação e, com elas, as conseqüências de uma decisão soberana acerca do que seja 'vida válida' ou 'vida sem valor', isto é, a vida mediada pela qualificação do homem como fundamento de algo ou não. Cabe ainda ressaltar que tal transfiguração se deu em razão de o verdadeiro apelo da Revolução Francesa não estar na discussão acerca da origem divina do rei, mas, isto sim, na justiça advinda desse poder, a qual é entregue nas mãos de um único homem. Donde a morte do rei poder ser assumida como algo necessário para a constituição de um espaço livre, igualitário e, melhor ainda, justo. Nesse contexto, a violência irrompe, tanto no pensamento quanto na ação revolucionária, como uma etapa necessária para a construção de um reino de virtudes. E isso porque o regicídio emerge não mais como a possibilidade de mudança do soberano, mas, isto sim, como a necessidade de mudança de estrutura governamental. Tais implicações possuem reflexos em dois âmbitos: por um lado no pensamento, surgindo como uma possibilidade mental plausível, de tal modo que se legitime o assassinato; e, por outro, nas ações ideológicas, as quais passam a ser validadas enquanto regras de conduta, de sorte que possam ser incluídas nos ditames legais, justificando, assim, o assassinato e a exclusão.
Do mesmo modo, a mudança de princípio implica uma mudança legal, isto é, jurídica, visto o direito divino não servir mais como argumento legal para as ações do Soberano. Há uma substituição no que concerne a um modelo de pensamento. Por um lado, exclui-se a aristocracia de sangue, a qual possuía seu poder na legitimidade dada pela Igreja, ou seja, em nome do poder divino. Por outro, instaura-se uma nova ordem jurídica, pautada em um "pensamento dito libertino [...], dos filósofos e dos juristas" 8, na qual os burgueses, cultos e poderosos, seriam capacitados para atender os anseios da massa. Tal substituição, cabe ressalvar, evidenciou um Estado caracterizado pelo elitismo, no qual o poder de legislar se desvirtuou em uma demonstração de concordância racional, retirando, assim, a possibilidade de aparecer como uma vontade política. Donde as práticas de controle dos corpos emergirem como possibilidade normativa de controle social, incluindo, desse modo, o campo do bios nas práticas políticas, o que, com efeito, faz da exclusão uma inserção legal.
Ora, para além da inclusão do bios no político, a tradição do pensamento filosófico-político - a partir da Modernidade, e de modo mais exacerbado pós-Revolução Industrial - construiu determinados modelos cujas representações políticas acabaram estabelecendo uma outra cisão, a saber: o distanciamento entre o 'mundo da vida' 9 e o 'mundo da política', provocando, no indivíduo, um sentimento de não pertença a este último. Em outras palavras, o indivíduo tanto ausente da esfera pública quanto de uma dita esfera política, está, neste distanciamento, refém daqueles que detém um discurso privado, ou seja, o homem se torna prisioneiro de uma minoria que se arroga detentora de um dado saber. Contudo, o indivíduo dificilmente se apercebe desta ruptura e de seu subseqüente distanciamento. Neste contexto, então, os homens, enquanto partícipes do discurso, acabam relegados e, assim, não dispõem de um espaço para exercerem plenamente a ação e, conseqüentemente, sua conditio humanæ. À vista disso, pode-se perceber que a questão relativa ao espaço público se encontra no cerne dos 'paradoxos da modernidade'; entretanto, este paradoxo específico se dá em virtude de um afastamento do politikos, isto é, da experiência do homem junto a polis. A sociedade moderna baseia a igualdade no conformismo, diferindo-se, assim, da igualdade antiga, a qual tinha como mote a inserção do indivíduo livre no espaço público.
O sentido de igualdade e, subseqüentemente, a noção de liberdade sancionada a partir da Modernidade, transformaram o indivíduo em 'consenso universal', tirando do homem aquilo que lhe é mais caro, ou seja, sua distinção com relação aos demais homens. Ademais, o suposto conformismo e a idéia de que homens se comportam de um dado modo uns em relação aos outros - apregoada pela ciência moderna - corrompem a noção de ação, na qual há um agir entre homens, e não uma norma de conduta validada social e cientificamente. Nesse sentido, a noção de igualdade acabou desvirtuada, de modo a apresentar-se equivocadamente; isto é, ganhou um sentido de identificação total das partes, destituindo, assim, os indivíduos de suas singularidades. Há de se pontuar que os homens são iguais quanto às suas possibilidades, e não quanto às suas expressões, sentimentos e condutas. A liberdade, desse modo, emerge da igualdade presente no diálogo e no convencimento por meio deste, e não da uniformização de todos, o que foi e vem sendo até então apregoado. Foucault aponta muito bem para a questão ao analisar os sistemas penitenciários, educacionais e manicomiais.
Efetivamente, é possível acatar a idéia em conformidade com a qual um novo paradigma emerge diante de determinados aspectos doutrinários da representação política, advindos da Modernidade. Ou seja, diante de uma sobrelevação da idéia de sociedade enquanto uniformidade social, cria-se um impasse nas questões filosófico-políticas atuais, principalmente quanto aos eventos perpetrados no último século; cabendo apontar para o fato de que uma análise conceitual de 'espaço público' implica a observação do lócus onde as relações sociais e políticas tanto se realizam quanto se resguardam, e no qual a ação se exterioriza. Em outras palavras, faz-se mister situar este lócus como sendo a esfera do agir público, o espaço por excelência da ação livre e coletiva. Logo, a dimensão valorativa deste pensamento, o qual é consoante com o de Hannah Arendt, refere-se ao significado de público, na qual a expansão da esfera social acabou por provocar, gradativamente, o estreitamento da esfera pública, culminando no reducionismo do significado primevo de público, e sinonimizando-o com os conceitos advindos de Estado. É preciso ainda ressalvar que, justamente no 'espaço público', Arendt identifica a intrínseca relação entre liberdade e democracia, entrelaçando aquela com a condição humana da pluralidade. Tais assertivas se justificam na medida em que é efetivamente através da liberdade, através de uma ação discursiva, que a todos é permitida a manifestação no 'espaço público'. Contudo, há de se frisar que liberdade e soberania são coisas distintas, haja vista a diferença estabelecida entre força e poder. Todavia, esta mesma relação:
A Revolução Francesa, assim, insurge como o marco crucial de uma significativa mudança de paradigma, haja vista que, pela primeira vez na história, um rei é morto não para se colocar outro em seu lugar, mas antes, para se destruir um princípio, o do direito divino. Como conseqüência, a busca por um ideário de liberdade acabou engolfada por um espaço político transformado em espaço jurídico, o qual se desenvolveu, posteriormente, nas acepções de Estado-nação e, com elas, as conseqüências de uma decisão soberana acerca do que seja 'vida válida' ou 'vida sem valor', isto é, a vida mediada pela qualificação do homem como fundamento de algo ou não. Cabe ainda ressaltar que tal transfiguração se deu em razão de o verdadeiro apelo da Revolução Francesa não estar na discussão acerca da origem divina do rei, mas, isto sim, na justiça advinda desse poder, a qual é entregue nas mãos de um único homem. Donde a morte do rei poder ser assumida como algo necessário para a constituição de um espaço livre, igualitário e, melhor ainda, justo. Nesse contexto, a violência irrompe, tanto no pensamento quanto na ação revolucionária, como uma etapa necessária para a construção de um reino de virtudes. E isso porque o regicídio emerge não mais como a possibilidade de mudança do soberano, mas, isto sim, como a necessidade de mudança de estrutura governamental. Tais implicações possuem reflexos em dois âmbitos: por um lado no pensamento, surgindo como uma possibilidade mental plausível, de tal modo que se legitime o assassinato; e, por outro, nas ações ideológicas, as quais passam a ser validadas enquanto regras de conduta, de sorte que possam ser incluídas nos ditames legais, justificando, assim, o assassinato e a exclusão.
Do mesmo modo, a mudança de princípio implica uma mudança legal, isto é, jurídica, visto o direito divino não servir mais como argumento legal para as ações do Soberano. Há uma substituição no que concerne a um modelo de pensamento. Por um lado, exclui-se a aristocracia de sangue, a qual possuía seu poder na legitimidade dada pela Igreja, ou seja, em nome do poder divino. Por outro, instaura-se uma nova ordem jurídica, pautada em um "pensamento dito libertino [...], dos filósofos e dos juristas" 8, na qual os burgueses, cultos e poderosos, seriam capacitados para atender os anseios da massa. Tal substituição, cabe ressalvar, evidenciou um Estado caracterizado pelo elitismo, no qual o poder de legislar se desvirtuou em uma demonstração de concordância racional, retirando, assim, a possibilidade de aparecer como uma vontade política. Donde as práticas de controle dos corpos emergirem como possibilidade normativa de controle social, incluindo, desse modo, o campo do bios nas práticas políticas, o que, com efeito, faz da exclusão uma inserção legal.
Ora, para além da inclusão do bios no político, a tradição do pensamento filosófico-político - a partir da Modernidade, e de modo mais exacerbado pós-Revolução Industrial - construiu determinados modelos cujas representações políticas acabaram estabelecendo uma outra cisão, a saber: o distanciamento entre o 'mundo da vida' 9 e o 'mundo da política', provocando, no indivíduo, um sentimento de não pertença a este último. Em outras palavras, o indivíduo tanto ausente da esfera pública quanto de uma dita esfera política, está, neste distanciamento, refém daqueles que detém um discurso privado, ou seja, o homem se torna prisioneiro de uma minoria que se arroga detentora de um dado saber. Contudo, o indivíduo dificilmente se apercebe desta ruptura e de seu subseqüente distanciamento. Neste contexto, então, os homens, enquanto partícipes do discurso, acabam relegados e, assim, não dispõem de um espaço para exercerem plenamente a ação e, conseqüentemente, sua conditio humanæ. À vista disso, pode-se perceber que a questão relativa ao espaço público se encontra no cerne dos 'paradoxos da modernidade'; entretanto, este paradoxo específico se dá em virtude de um afastamento do politikos, isto é, da experiência do homem junto a polis. A sociedade moderna baseia a igualdade no conformismo, diferindo-se, assim, da igualdade antiga, a qual tinha como mote a inserção do indivíduo livre no espaço público.
O sentido de igualdade e, subseqüentemente, a noção de liberdade sancionada a partir da Modernidade, transformaram o indivíduo em 'consenso universal', tirando do homem aquilo que lhe é mais caro, ou seja, sua distinção com relação aos demais homens. Ademais, o suposto conformismo e a idéia de que homens se comportam de um dado modo uns em relação aos outros - apregoada pela ciência moderna - corrompem a noção de ação, na qual há um agir entre homens, e não uma norma de conduta validada social e cientificamente. Nesse sentido, a noção de igualdade acabou desvirtuada, de modo a apresentar-se equivocadamente; isto é, ganhou um sentido de identificação total das partes, destituindo, assim, os indivíduos de suas singularidades. Há de se pontuar que os homens são iguais quanto às suas possibilidades, e não quanto às suas expressões, sentimentos e condutas. A liberdade, desse modo, emerge da igualdade presente no diálogo e no convencimento por meio deste, e não da uniformização de todos, o que foi e vem sendo até então apregoado. Foucault aponta muito bem para a questão ao analisar os sistemas penitenciários, educacionais e manicomiais.
Efetivamente, é possível acatar a idéia em conformidade com a qual um novo paradigma emerge diante de determinados aspectos doutrinários da representação política, advindos da Modernidade. Ou seja, diante de uma sobrelevação da idéia de sociedade enquanto uniformidade social, cria-se um impasse nas questões filosófico-políticas atuais, principalmente quanto aos eventos perpetrados no último século; cabendo apontar para o fato de que uma análise conceitual de 'espaço público' implica a observação do lócus onde as relações sociais e políticas tanto se realizam quanto se resguardam, e no qual a ação se exterioriza. Em outras palavras, faz-se mister situar este lócus como sendo a esfera do agir público, o espaço por excelência da ação livre e coletiva. Logo, a dimensão valorativa deste pensamento, o qual é consoante com o de Hannah Arendt, refere-se ao significado de público, na qual a expansão da esfera social acabou por provocar, gradativamente, o estreitamento da esfera pública, culminando no reducionismo do significado primevo de público, e sinonimizando-o com os conceitos advindos de Estado. É preciso ainda ressalvar que, justamente no 'espaço público', Arendt identifica a intrínseca relação entre liberdade e democracia, entrelaçando aquela com a condição humana da pluralidade. Tais assertivas se justificam na medida em que é efetivamente através da liberdade, através de uma ação discursiva, que a todos é permitida a manifestação no 'espaço público'. Contudo, há de se frisar que liberdade e soberania são coisas distintas, haja vista a diferença estabelecida entre força e poder. Todavia, esta mesma relação:
Sempre
foi aceita como natural, tanto pelo pensamento político como pelo pensamento
filosófico. Se a soberania e a liberdade fossem a mesma coisa, nenhum homem
poderia ser livre; pois a soberania, o ideal da inflexível auto-suficiência e
auto-domínio, contradiz a própria condição humana da pluralidade. 10
Ademais, toda soberania sempre se apresenta espúria
quando reivindicada por uma entidade única e isolada, quer seja a entidade
individual da pessoa quer seja a entidade dita 'coletiva' do Estado. Consoante
Arendt,
A
soberania reside numa limitada independência em relação à impossibilidade de
calcular o futuro, e seus limites são os mesmos limites inerentes à própria
faculdade de fazer e cumprir promessas. A soberania de um grupo de pessoas cuja
união é mantida, não por uma vontade idêntica que, por um passe de mágica, as inspirasse
a todas, mas por um propósito com o qual concordaram e somente em relação ao
qual as promessas são válidas e têm o poder de obrigar, fica bem clara por sua
inconteste superioridade em relação à soberania daqueles que são inteiramente
livres, isentos de quaisquer promessas e desobrigados de quaisquer propósitos. 11
Uma suposta igualdade no âmbito de um
Estado-político - pautado em conceitos e fundamentos erigidos a partir da
modernidade - só se presentifica em um mecanismo de uniformização de entes
desiguais que precisam ser "igualados" sob certos aspectos e por
motivos específicos. 12 O
espaço público, em seu sentido político original, estabelece a realidade do
próprio 'eu' (self), isto é, da identidade própria de cada indivíduo;
outrossim, estabelece a realidade do mundo circundante. Segundo Hannah Arendt,
o que distingue a era Moderna não é, tal como supunha Marx, a alienação em
relação ao ego 13,
mas, isto sim, a alienação em relação ao mundo. Logo, o processo de alienação
do sujeito em relação ao mundo faz com que surja uma atrofia do 'espaço
público', e um dos fatores que mais contribuíram para o homem moderno se tornar
alienado foi, decerto, a expropriação, na qual o acúmulo de riquezas e a
aquisição de propriedades fizeram emergir, do mundo comum, donos privados,
tornando-se, assim, o mais elementar processo de alienação do mundo do qual
resultou. Neste contexto, percebe-se um deslocamento e um progressivo
alargamento das decisões sobre a vida, sobre o bios humano, a qual
transmuta em uma decisão sobre a morte. Tal transfiguração, alude Agamben, faz
com que a biopolítica acabe se convertendo em tanatopolítica, de modo a
se tornar "uma linha em movimento que se desloca para zonas sempre mais
amplas da vida social, nas quais o soberano entra em simbiose cada vez mais
íntima [como já aludido] não só com o jurista, mas também com o médico, com o
cientista, com o perito, com o sacerdote" 14. Em outras palavras, a ingerência do soberano
sobre os cidadãos torna-se uma intrusão de princípios biológico-científicos na
ordem política.
Nesse sentido, Albert Camus realiza um diálogo com o pensamento arendtiano, bem como com todos os que apontam para as relações política com bases críticas na intrusão biocientífica nas leis e soberanias. Segundo o pensador argelino, toda uma 'revolta metafísica' chega, no curso do século XIX para o XX, ao ápice de sua contradição; haja vista que, na ausência de Deus, se procura por um reino único, no qual a comunidade humana possa emergir dos escombros deixados pela comunidade divina. Em outras palavras, a revolta desemboca em busca por justiça e por moral. O homem, assim, tem em vista uma liberdade absoluta; contudo, em sua procura, a única coisa com que se depara é uma "prisão de deveres absolutos, uma ascese coletiva, uma história a ser terminada" 15. A 'revolta', portanto, ao rejeitar toda e qualquer servidão, acaba por almejar possuir a criação como um todo. Donde o revoltado, que antes só desejava conquistar seu próprio ser e mantê-lo, esquece agora as origens de sua revolta, bane Deus e se une ao espírito revolucionário. Consoante Camus, "morto Deus, resta a humanidade, quer dizer, a história, que é preciso compreender e construir" 16. O homem visa, portanto, a todos os meios disponíveis para construir sua história. E,
Nesse sentido, Albert Camus realiza um diálogo com o pensamento arendtiano, bem como com todos os que apontam para as relações política com bases críticas na intrusão biocientífica nas leis e soberanias. Segundo o pensador argelino, toda uma 'revolta metafísica' chega, no curso do século XIX para o XX, ao ápice de sua contradição; haja vista que, na ausência de Deus, se procura por um reino único, no qual a comunidade humana possa emergir dos escombros deixados pela comunidade divina. Em outras palavras, a revolta desemboca em busca por justiça e por moral. O homem, assim, tem em vista uma liberdade absoluta; contudo, em sua procura, a única coisa com que se depara é uma "prisão de deveres absolutos, uma ascese coletiva, uma história a ser terminada" 15. A 'revolta', portanto, ao rejeitar toda e qualquer servidão, acaba por almejar possuir a criação como um todo. Donde o revoltado, que antes só desejava conquistar seu próprio ser e mantê-lo, esquece agora as origens de sua revolta, bane Deus e se une ao espírito revolucionário. Consoante Camus, "morto Deus, resta a humanidade, quer dizer, a história, que é preciso compreender e construir" 16. O homem visa, portanto, a todos os meios disponíveis para construir sua história. E,
no
auge do irracional, o homem, em terra que ele sabe ser de agora em diante
solitária, vai juntar-se aos crimes da razão a caminho do império dos homens.
Ao "eu me revolto, logo existimos" ele acrescenta, tendo em mente
prodigiosos desígnios e a própria morte da revolta: "E estamos sós" 17
Lembrando que a ideologia corrompe a singularidade
do indivíduo, transfigurando-o em ente universal, pode-se perceber que o
processo revolucionário burguês - que buscava a liberdade e a igualdade em um
modelo de ação participativa e comunicativa -, gerou, erroneamente, um modelo
privado de representação. Cria-se, desse modo, uma dicotomia e uma
contraposição entre aquilo que se denomina de representação nacional e aquilo
denominado por representação popular, na qual os homens interagem para garantir
a isonomia e a isegoria de sua condição. A partir de então, as
relações entre o bios e o político se tornaram assaz problemáticas, de
modo a fazer o homem criar uma esfera de controle sistemático dos corpos e,
consequentemente, das ações humanas. Tal questão denota não apenas as relações
de controle dos modos de vida, mas antes, a própria transformação, formulada
por juristas, desde o século XVII e, sobretudo XVIII, a propósito do direito de
vida e de morte 18.
Afinal, se a vida é o alicerce para se dar ou não um determinado direito a um
soberano, pode-se crer que o poder sobre vida, possa, portanto, fazer parte das
atribuições do soberano? Destarte, se aqueles que elegem o soberano, o fazem no
afã de proteger a vida, como conjugar o binômio 'vida/morte' como atribuição do
soberano? Tais questões, efetivamente mais presentes na obra de Michel
Foucault, fortalecem o enlace entre perspectivas e problemas de ordem
filosófico-política desde o fim da dita 'Modernidade'.
Cabe, por fim, ainda lembrar que esta questão, efetivamente, não pode ser circunscrita somente aos eventos marcados na primeira metade do século XX, do qual o Nazismo, o Fascismo e o Stalinismo foram partícipes de primeira grandeza. Na verdade, estes fenômenos nada mais fizeram do que trazer à tona uma operação logística, pautada na ciência e no Direito, que discrimina dois tipos de vida, uma, na linguagem de Agamben 19, entendida como autêntica de outra compreendida como 'vida nua'; em outras palavras, uma vida valorada politicamente e outra desprovida de qualquer valor político. A ascese do racismo, das 'crenças' eugênicas só podem, então, ser compreendidos diante deste contexto, haja vista que este se abre em um movimento crescente, o qual tem se utilizado dos mecanismos legais para fazer da exclusão e da exceção, paradoxalmente, estruturas inclusivas. Destarte, apesar do caráter contraditório destes processos, estes vêm se ampliando ao longo dos anos, abrindo brechas para organismos de controle em governos, ironicamente, entendidos como democráticos.
Cabe, por fim, ainda lembrar que esta questão, efetivamente, não pode ser circunscrita somente aos eventos marcados na primeira metade do século XX, do qual o Nazismo, o Fascismo e o Stalinismo foram partícipes de primeira grandeza. Na verdade, estes fenômenos nada mais fizeram do que trazer à tona uma operação logística, pautada na ciência e no Direito, que discrimina dois tipos de vida, uma, na linguagem de Agamben 19, entendida como autêntica de outra compreendida como 'vida nua'; em outras palavras, uma vida valorada politicamente e outra desprovida de qualquer valor político. A ascese do racismo, das 'crenças' eugênicas só podem, então, ser compreendidos diante deste contexto, haja vista que este se abre em um movimento crescente, o qual tem se utilizado dos mecanismos legais para fazer da exclusão e da exceção, paradoxalmente, estruturas inclusivas. Destarte, apesar do caráter contraditório destes processos, estes vêm se ampliando ao longo dos anos, abrindo brechas para organismos de controle em governos, ironicamente, entendidos como democráticos.
Notas
1 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo III.
Totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário. 1979. pp
.218.223.
2 AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002. p. 146.
3 FOUCAULT, M. La volonté de savoir. Apud AGAMBEN. Op. Cit. p. 125.
4 Esta expressão é por mim utilizada no intuito de representar um novo tipo de homem o qual emerge da minimização de sua conditio humanæ; um ser desprovido de ação que, submerso na carência de uma esfera capaz de lhe conceder o status de coletivo, vê-se tentado a hostilizar outros homens.
5 LAFER, Celso. Prefácio. In ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001. p. 9.
6 ARENDT, H. Sobre a violência. p.40.
7 AGAMBEN. Op. Cit. p. 135.
8 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 1996. p. 138.
9 Isto é, na acepção husserliana, o conjunto de todas as produções do espírito humano. O mundo tal qual ele é por essência, aquele que precede tanto ontologicamente quanto cronologicamente, a artificialização da natureza.
10 ARENDT, H. A Condição Humana Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993.p. 246.
11 Idem. p. 256.
12 Idem. p. 257.
13 Idem. p. 266.
14 AGABEM, G. Op. Cit. p. 128.
15 CAMUS, A. Op. Cit. p. 127.
16 Idem. p. 128.
17 Ibidem.
18 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 287.
19 Cf. AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002.
2 AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002. p. 146.
3 FOUCAULT, M. La volonté de savoir. Apud AGAMBEN. Op. Cit. p. 125.
4 Esta expressão é por mim utilizada no intuito de representar um novo tipo de homem o qual emerge da minimização de sua conditio humanæ; um ser desprovido de ação que, submerso na carência de uma esfera capaz de lhe conceder o status de coletivo, vê-se tentado a hostilizar outros homens.
5 LAFER, Celso. Prefácio. In ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001. p. 9.
6 ARENDT, H. Sobre a violência. p.40.
7 AGAMBEN. Op. Cit. p. 135.
8 CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 1996. p. 138.
9 Isto é, na acepção husserliana, o conjunto de todas as produções do espírito humano. O mundo tal qual ele é por essência, aquele que precede tanto ontologicamente quanto cronologicamente, a artificialização da natureza.
10 ARENDT, H. A Condição Humana Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993.p. 246.
11 Idem. p. 256.
12 Idem. p. 257.
13 Idem. p. 266.
14 AGABEM, G. Op. Cit. p. 128.
15 CAMUS, A. Op. Cit. p. 127.
16 Idem. p. 128.
17 Ibidem.
18 FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999. p. 287.
19 Cf. AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2002.
REFERÊNCIAS:
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:UFMG, 2002.
ARENDT, H. A Condição Humana Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993
______. Origens do Totalitarismo III. Totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário. 1979.
______. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001
CAMUS, A. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 1996.
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
______. La volonté de savoir. Paris: Gallimard. 1976.
______. Naissance de La Biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Paris: Gallimard. 2004.
LAFER, Celso. Prefácio. In ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:UFMG, 2002.
ARENDT, H. A Condição Humana Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1993
______. Origens do Totalitarismo III. Totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Ed. Documentário. 1979.
______. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001
CAMUS, A. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record. 1996.
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
______. La volonté de savoir. Paris: Gallimard. 1976.
______. Naissance de La Biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979). Paris: Gallimard. 2004.
LAFER, Celso. Prefácio. In ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 2001