quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A Arte como Fabricante de Universos: A Transgressão do Real (Texto Publicado) por Georgia Amitrano


O inferno só tem um tempo, a vida um dia recomeça.Talvez a história tenha um fim, nossa tarefa, no entanto, não é terminá-la, mas criá-la à imagem daquilo que doravante sabemos ser verdadeiro. A arte, pelo menos, nos ensina que o homem não se resume apenas à história. [...] Os revoltados que querem ignorar a natureza e a beleza são condenados a banir da história que desejam construir a dignidade do trabalho e da existência. Todos os grandes reformadores tentam construir na história o que Shakespeare, Cervantes, Molière e Tolstoi souberam criar: um mundo sempre pronto a satisfazer a fome de liberdade e de dignidade que existe no coração de cada homem. Sem dúvida, a beleza não faz revoluções. Mas chega um dia em que as revoluções têm necessidade dela[i].

Segundo Hannah Arendt, é pela obra que o homo faber, o ‘fabricador de objetos’, rompe com o anonimato no qual se encontrava imergido enquanto simples animal laborans. Afinal, conquanto o trabalho apareça como uma atividade infinda, a obra ou fabricação tem tanto um início quanto um fim já determinados; terminando com um resultado palpável e durável, a saber: o objeto de uso. Ao fabricar objetos de uso, o homem não apenas constrói o mundo, mas também, e principalmente, inaugura a identidade humana. Identidade esta que se dá, dentre outras coisas, na duração do objeto criado. É pela atividade da obra ou da fabricação que o homem tece o mundo humano, dando, assim, formas às coisas, e, quando prontas, essas mesmas coisas fabricadas tornam-se novos condicionantes para o homem. Ora, dentre as coisas que sustentam a identidade do homem no mundo, a obra de arte se destaca, haja vista sua característica de suma duração e ausência de utilidade. “Dada a sua eminente permanência, as obras de arte são as mais intensamente mundanas de todas as coisas tangíveis; [ademais], a fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar”
[ii].

Nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. [...] É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte de sorte que certo pressentimento de imortalidade [...] adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido
[iii].

É justamente pelo fato de não possuir utilidade aparente que a obra de arte consome-se no seu próprio clarão, pois sua função é aparecer para revelar o ‘belo’. Enquanto que a objetividade de todos os objetos de que nos rodeamos repousa em terem uma forma através da qual aparecem, apenas as obras de arte são feitas para o fim único do aparecimento
[iv]..Em outras palavras, na reificação[v] da obra de arte ocorre algo pra além de uma transformação. De fato o que se verifica é uma transfiguração, uma metamorfose que ultrapassa os limites da utilidade para o horizonte do sentido. Ora, se a fonte da obra de arte está na capacidade de pensar, então a reificação verificada na obra de arte emerge não do instante do pensamento, mas, isto sim, da transformação do pensamento em realidade através das mãos do homem, do artista neste caso. As obras de arte, desse modo, são, eminentemente, fruto do pensamento, sem, contudo, abandonarem sua existência de coisa. O artista, portanto, não copia o real, mas o cria, construindo para além do pensamento dado. Nesse sentido, remeto-me mais uma vez a Picasso, já que em suas pinturas com motivo de natureza morta, tais como violino com uvas e violino e guitarra, ele opera uma disfunção; transfigurando os objetos, cria obras de arte. Destarte, as telas criadas perduram como obra do pensamento do artista, as quais rompem com os limites da instrumentalidade de objetos, incorporando-os em uma outra forma, e encontrando um sentido cuja ocorrência se dá na própria obra criada.
Consoante Gombrich:

Se pensarmos num objeto, digamos, um violino, ele não se apresenta ao olho de nossa mente tal como o vemos com os olhos de nosso corpo. Podemos pensar e, de fato, pensamos em seus vários aspectos ao mesmo tempo. [...] Alguns deles destacam-se tão claramente que sentimos poder tocá-los ou manipulá-los. E, no entanto, essa estranha mistura de imagens representa mais do violino ‘real’ do que qualquer instantâneo ou pintura meticulosa poderia jamais conter
[vi].


Ora, a atitude estética, portanto, em face de uma apropriação específica do real, torna-se capaz de apresentar, e quiçá construir uma nova dimensão para a humanidade. Inscrita a partir de uma reflexão trágica do mundo e da existência, essa atitude entendida como artística busca direcionar o homem a uma nova forma de olhar
[vii] e ausculta deste mundo e deste real apropriados. Isto se faz possível, justamente, através da transgressão a qual a obra estética está sujeita. Ademais, esta atitude transgressora, metamórfica e transfigurada, acaba, no olhar camusiano, apresentando-se como arte revoltada. Afinal, consoante Arendt, ‘o artista parece o único indivíduo que resta na sociedade de massas’, e a ‘poesia’, cujo material é a linguagem, é a mais humana e a menos mundana das obras fabricadas pelo homem. Não é a toa que Arendt escolhe Rilke para ilustrar o clamor das chamas presente na obra de arte.
Do brilho indescritível da transformação/
Tais criações: Sensação! Confiança!/
Nós sofremo-la frequentemente: as flamas transformam-se em cinzas; /
Ainda, na arte: as flamas vêm da poeira. /
É aqui mágico. No reino de um período/
A palavra comum parece levantada acima de… /
No entanto, é realmente como a chamada do macho/
Que chama a pomba fêmea invisível
[viii].

À vista disso, podemos apontar para a atitude estética; isto é, para obra e artista como representantes de uma ação e de um modelo de recusa. Por um lado, (i) o artista aparece como aquele que, consoante Camus, possui a paixão pela unidade, fazendo desta a motivação mais genuína da consciência revoltada. Paradoxalmente, tal paixão é contraditória, visto o ato de criação se dar, simultaneamente no aceite e na recusa da realidade dada: “o homem [como já referido] recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele”
[ix]. Por outro lado, (ii) a obra de arte aparece como aquela que possui sua essência na eterna correção. Em outras palavras, a expressão estética, a aísthesis proclamada atua como uma textura de idéias, cujos questionamentos dependem, para além da apreciação de gosto, da própria expressão a qual a estética, como possibilidade ético-político, se propõe. A inovação desta análise “aisthetica” consiste, portanto, em reconhecer que mundo não está no singular e que tampouco o real dado é a última palavra. A criação artística, destarte, tanto permite ao homem marcar o mundo com seu próprio selo quanto o faz perceber o rosto do outro como uma experiência que cria o mundo político[x]. Afinal, na revolta suscita-se o sentimento no qual “o homem se transcende no outro”[xi]
Há, decerto, na atitude estética um deslocamento, no qual a criação artística sai de seu campo estritamente específico, o ‘belo’, para uma atmosfera expandida nas diferentes relações humanas. Em outras palavras, há a passagem da obra de arte do seu campo estético para o ético-político, concomitante, à passagem do animal laborans para o homo faber. Ora, se é na atividade da obra que o homem tece o mundo humano, então, pode-se afirmar que é na criação artística que o homem traduz sua condição política.
A despeito desta conotação política da arte aqui apregoada, faz-se mister apontar para o fato de ser comum certo reducionismo de algumas interpretações acerca do tema, as quais insistem em tentar delimitar temporalmente certa arte política, fazendo da mesma uma atitude de protesto e panfleto na luta contra ditaduras específicas do século XX. É nesse sentido que, em vista de aísthesis proclamada, urge apontar para a arte e para o artista, apresentando-os como estruturas de resistência; isto é, como participes de um movimento engajado que de modo algum panfleta em nome de qualquer ideologia, mas, isto sim, reconstrói o mundo a partir da tensão premente da criação e recusa do mesmo. É para além da importância das poéticas revolucionárias e contestatórias que o sentido ético-político da arte se revela, apontando para outras contextualizações tanto mais complexas quanto diversificadas.
Para fora de fixar a práxis estética em uma hermenêutica da atividade crítica e do ‘fazer-criado’, é fundamental entender a torrente da própria atividade no instante que esta inunda os vales do seu ‘escrever-se’ e ‘propagar-se’ na Modernidade. É nesse sentido que é possível traçar paralelos entre este pensamento da aísthesis encontrado em Arendt e Camus com o de outros pensadores, de modo a defender a idéia de arte como fabricante de universos, capaz não somente de representar o real, mas também de transgredi-lo e, de certo modo, alterá-lo. Consoante Camus, “a bem dizer, a exigência da revolta é em parte uma exigência estética”
[xii]. Ou seja, a criação artística aparece como engajamento e revolta, ou, pelo menos, em seu estado primitivo, como um questionamento, uma enunciação do conteúdo da revolta.

Engajamento, Arte e Transgressão: As dobras da linguagem

A busca da verdade é a aventura própria do involuntário [...] O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. [...] O signo sensível nos violenta: mobiliza a memória, põe a alma em movimento; mas a alma, por sua vez, impulsiona o pensamento, lhe transmite a pressão da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única coisa que deva ser pensada. Assim, as faculdades entram em um exercício transcendente em que cada uma afronta e encontra seu limite: a sensibilidade, que apreende o signo, a alma, a memória, que o interpreta; o pensamento, forçado a pensar a essência. Com justa razão pode Sócrates dizer: sou o Amor mais que o amigo, sou o Amante; sou a arte mais que a filosofia; sou a coação e a violência, mais que a boa vontade
[xiii].

As práticas artísticas desempenham um importante papel na partição do perceptível à medida que suspendem as coordenadas da experiência sensível e remarcam a rede de relações entre espaços e tempos, sujeitos e objetos, o comum e o singular. Há um campo simbólico construído sobre frases escritas, mãos de mármore, tintas e pincéis que, dispostos como ferramentas sobre a mesa, evidenciam o excesso e remetem às relações entre homem e mundo. A metáfora da obra de arte como ferramenta do pensamento é justamente o limite ‘transposicional’ de espaço e do tempo, o qual possibilita certas relações independentes entre si. A arte, portanto — em uma hermenêutica que se espalha no exceder —, surge como forma expressiva sobre a qual se medita e se discorre a partir do ‘intraduzível’ e do ‘caótico’. E é no emergir desta atividade estética que a arte delimita sua existência visível e sua práxis, evidenciando o mundo através de sua expressividade. Ora, conquanto a dita arte política, isto é a arte panfletária e ideológica se ocupa do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto — acreditando possuir a competência para verificar a qualidade das coisas, para falar das propriedades do espaço e dos possíveis no tempo —, a criação artística, como obra engajada e transcendente, não captura a política e as vicissitudes humanas por sua vontade, isto é, pelo pensamento de um povo como obra de arte; ao contrário, ela emerge como um recorte dos tempos e espaços, do visível e do invisível, da palavra e do sonoro que, sem definir um tempo e um lugar exatos, provoca a recusa do mundo e denuncia aquilo que lhe falta.
É nesse sentido que o olhar estético da criação se estende ao pensamento de Gilles Deleuze, para quem a arte é possuidora do grau mais elevado de verdade; apresentando-se, desse modo, como um signo
[xiv] maior que, contrapondo-se aos demais[xv], explicita sua superioridade perante a materialidade dos signos que rodeiam o mundo do pensamento. Ora, justamente por contrapor-se, a arte compreende todos os demais signos; integrando-os, quebra a opacidade que fazia com que estes não aparentassem colorido. A arte, desse modo, ultrapassa o nível da interpretação, partindo do material ao ideal de modo a encontrar uma essência maior, haja vista expressar-se sem contingências, isto é, sem a materialidade ou a subjetividade. Por conseguinte, apresenta-se singularmente e se encontra liberta das armadilhas do objeto e das tramas da subjetividade. A arte, portanto, constitui a verdadeira unidade, aquilo que une o signo ao sentido.
À vista disso, Deleuze vislumbra certo poder na arte, o qual apresenta pelo menos três qualidades superiores aos demais signos, a saber: “a imaterialidade; a essencialidade absoluta do sentido; a perfeita adequação signo-sentido”
[xvi] Para Deleuze, portanto, a arte é a “diferença última e absoluta”[xvii], apresentando-se, destarte, como “diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença, que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós”[xviii], pois sem ela não nos mostraríamos, não nos revelaríamos. Afinal, cada sujeito possui seu próprio mundo, sendo isto o que constitui a própria diferença. Os mundos, vale lembrar, são tanto singulares quanto diferentes, e pertencem a particulares. Estes mundos, ademais, se expressam dentro do sujeito e nunca fora dele. Para Deleuze, “o mundo envolvido na essência é sempre um começo do mundo geral, um começo do universo, um começo radical e absoluto”[xix]. Um começo que é sempre recomeço. Um eterno retorno de diferenças únicas ou singulares. Uma perpétua recriação, que define o nascimento do tempo. Tempo que sempre é redescoberto, e que revela “seu estado puro contido nos signos da arte”[xx]. É diante de tal afirmação que a arte aparece como o que permite a redescoberta do tempo enredado na essência. E é o sujeito, enquanto artista, aquele capaz de redescobrir o tempo no instante de seu nascimento.
Ora, o artista, então, é aquele capaz de conduzir o tempo e o mundo para recriar tanto o real quanto a si mesmo. Em outras palavras, a obra artística é fruto de uma ação do pensamento. Não se trata, portanto, do aproveitamento de um dado saber; antes, o artista, para além de ser um ‘fabricador de objetos’, é capaz de realizar a práxis artística como modelo de pensamento, tendo a competência, dentre outras coisas, de equacionar ética com estética, fazendo dessa ética mais que uma disciplina de conduta, a própria ‘natureza humana’. Dirige seu olhar tanto para o sensível quanto para a razão e intuição deste mundo que o cerca; torna-se, assim, consciente de que todos os tempos históricos coexistem no agora da ‘humanidade’ e nos tempos internos de cada indivíduo. A criação artística apresenta-se, assim, como o êxtase pelo qual o indivíduo-artista observa-se, transforma-se e constrói uma nova realidade em sua obra. É no criar que o artista abre a possibilidade de expressar o ético e o político esteticamente. O par ético-estético transmuta e metamorfoseia não somente o indivíduo-artista, mas também e, talvez principalmente, o mundo que contempla a obra de arte construída.
A capacidade criativa, a produção exercida pelo artista emerge como a aparição de uma diferença. Em outras palavras, a criação estética aparece com a construção de algo que não podia ser simplesmente deduzido a partir do real dado. O verdadeiro artista e a verdadeira ‘obra de arte’ são coisas raras; o criador não é encontrado no homem comum; e, como alude Deleuze, ‘ter uma idéia é uma espécie de festa’. O que se pretende nesta análise é apontar para o ato da criação como algo capaz de apreender do visível, o invisível, bem como para o criador-artista como aquele capaz de realizar um novo tipo de discurso do mundo e do real. A práxis estética torna-se, destarte, a possibilidade de uma re-construção do mundo. Enquanto processo e experiência, a criação ultrapassa as fronteiras meramente da forma-imagem ou do objeto resultante.
A obra de arte, desse modo, desperta no artista a função transgressora, haja vista a transgressão ser, como alude Bataille, um movimento da poesia que se abre ao “não-saber”, uma espécie de êxtase e erotismo capaz de vislumbrar o impossível, recusando e criando simultaneamente o real. À vista disso, faz-se mister salientar que para Bataille há no trabalho uma forma de regulação econômica dos fluxos, apresentando-se, portanto, não apenas como uma tentativa de controle dos gastos, mas antes, como uma estrutura normatizante que se impõe contra o excesso. É nesse sentido que determinadas atitudes se sobressaem, visto serem capazes de romper com a norma instituída; isto é, há certas formas de ação que desempenham uma função transgressora, as quais se põem frente a toda “lei” que subsista apenas como estrutura de normatização e minimização da conditio humanæ. Logo, pode-se aferir que, para se escapar de uma vida medíocre e sistêmica, é necessário transgredir e exacerbar. Decerto, das várias formas de vazão que existem, tais como a embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia e o sacrifício, encontra-se a poesia. Em outras palavras existe a arte, o artista e sua obra, os quais aparecem como expressões transgressoras da norma, pois, para fora do ato criativo e do produto a ser contemplado, tanto criador quanto obra criada emergem como elementos aptos a levarem o indivíduo a exceder seus limites e vislumbrar para além do possível.
Essa reflexão empreendida acerca da atitude estética é visível em seu aspecto engajado no pensamento de Albert Camus. Afinal, por mais que a função da obra de arte resida na criação do mundo e na contestação da realidade apregoada, há um refletir manifesto na atitude estética que, em um primeiro momento, se apresenta necessariamente como negação e recusa
[xxi] a todo um estratagema social que aparece ao artista como corrompido desde suas bases. Esse ato refletido, para Camus, denomina-se, como já salientado, de revolta. E esse ‘revoltar-se’ leva a expressão artística a uma atitude entendida como ética[xxii], pois, em sua transgressão da realidade, é capaz de provocar no homem comum algum tipo de reação contra o tédio de sua própria existência. Nesse sentido, Camus está em plena sintonia com Deleuze, haja vista apontar par a criação artística como um equacionamento entre ética e estética. Contudo, na ambientação da revolta é necessária uma forma de arte mais específica, visto não ser qualquer expressão artística capaz de supor, ou mesmo atuar no âmbito da dimensão ética. Logo, há modalidades estéticas capazes de transgredir e, por conseguinte, recusar e resistir a um mundo normatizado e pré-instituído. A este tipo específico de arte, denominamos arte ‘engajada’. Ou seja, há, como já salientado, uma expressão artística que não panfleta em nome deste ou daquele modelo determinado de sociedade, mas, isto sim, age de forma crítica e denunciatória contra toda estrutura social que impele o homem a uma vida medíocre, normatizada e impessoal.
Ora, acatando-se a atitude estética [artística] como possibilidade de transgressão e ruptura, deve-se, então, conhecer aquele que é sua causa
[xxiii]; isto é, o homem-artista, esta criatura que se recusa ser o que aparentemente é, visto revoltar-se contra sua própria condição. Ou seja, o artista engajado deve ser entendido como aquele que se posiciona contra a acomodação e mediocridade, as quais pretendem encerrá-lo em uma vida medíocre. Seu grito resistente objeta a forma pela qual sua existência é erigida, o que o leva a redesenhar sua própria condição de existir, glorificando-se na beleza expressiva que a arte evoca. O artista, destarte, surge como quem não tolera o real. No entanto, ninguém pode prescindir dele [real]. Logo, esse criador por excelência oscila em uma linha tênue, na qual razão e imaginação se misturam. Segundo Albert Camus, a criação artística deve ser entendida como “exigência de unidade e recusa do mundo”[xxiv], pois o verdadeiro criador rejeita o mundo, justamente, por perceber que nele há uma carência, isto é, falta-lhe algo. Sendo assim, cabe a estes operários das penas, brochuras e pincéis lhe dar um fim, um télos. Na revolta, o criador não banaliza suas ações com puros assentimentos ou renúncias; a arte por ele realizada possui por finalidade última compreender este mundo que surge de tempos em tempos, moldar-lhe uma face e, não simplesmente julgá-lo.
A expressão artística revoltada, portanto, emerge como um eco de razão e de recusa. Sua inserção política não se dá nas mensagens e tampouco na maneira pela qual são representadas as estruturas, os conflitos ou as identidades sociais. A expressão artística, em uma estética da revolta, ecoa política e eticamente em virtude da distância mesma que toma; sublinhando o mundo, tenciona o real não apenas no conjunto das estruturas estéticas forjadas; antes, na percepção e criação de um espaço-tempo específico. A arte, neste aspecto, insurge como configuração de um espaço, como a delimitação de uma esfera específica de experiência, encontrando-se tanto à disposição dos objetos “comuns” quanto dos sujeitos a quem se reconhece na capacidade de designar esses objetos. As relações éticas vinculadas nesta práxis abarcam vários segmentos no campo estético, haja vista que, independente de uma obra final, cria seu sentido na relação que mantém com a produção de subjetividade. Tal qual o homem que pensa não poder realizar pensamentos de não-significação, pois estes já pressupõem um significado, também a obra de arte não pode ser a do não sentido, pois ela já possui sentido no simples fato de existir.
Decerto, o que importa não é o ‘objeto’, a obra manufaturada; antes, é o movimento o que desperta tanto razão quanto recusa. Este movimento que a obra de arte encena, possibilita certa compreensão das estruturas que estão em embate, criando um binômio dialético sem síntese do interdito e da transgressão. A obra de arte enquanto estrutura de recusa do real torna-se, por conseguinte, a vivência do excesso, o ‘mal’
[xxv] pontuado por Bataille; contudo, a recusa proclamada não é absoluta, haja vista nela o real se harmonizar, ganhar a densidade e a unidade almejadas. Ora, na obra de arte, principalmente na literatura, ao se suspender a realidade, a figura do transgressor se fortalece, de modo a transformar-se em mito justamente pelo enfrentamento da morte. Exemplo claro está na admiração por Jean Genet[xxvi]. O escritor francês fascina como o transgressor emoldurado pela escrita. Na busca da ‘santidade pelo mal’, Genet adota a invocação poética como meio de transfiguração de sua vida repleta de signos de corrupção e decadência. Bataille afirma que somente no mal esculpimos os traços efetivamente humanos de nossa fisionomia. Afinal, é no mal que se quebra a integridade social, se transborda o erotismo e, através da recusa e criação do real, se alcança o impossível. Nesse sentido, a obra de Sade pode ser lida como o grau supremo e mais acabado de sua manifestação. Não é em vão que Camus afirma que na “festa da razão” implementada por Saint-Just, a Revolução Francesa guilhotinou o único poeta de seu tempo[xxvii].
A obra de arte, a expressão do artista é assim um espaço não-representativo no qual a linguagem subsiste dobrada sobre si mesma, sem sujeito e sem adereços
[xxviii]. É, destarte, pura transgressão. Mas, dentre todas as obras, pode-se dizer que é na literatura que o tempo não se perde: é resgatado como na recherche de Proust; este retorna como outro que não o marcado pelo ponteiro do relógio. Ademais, no romance, a morte é adiada. A literatura emerge, então, como um mecanismo para burlar a realidade cruel, a finitude, haja vista o romancista em suar obras, como já afirmara Camus, ser capaz de viver inúmeras vezes, tantas quanto as suas personagens. A obra literária, destarte, tematiza o vazio primordial, aquele donde as palavras ainda não nasceram. Em outros termos, a transgressão literária, em seu excesso e exacerbação, reflete o mundo e torna-se profética; apontando sempre para mais dura realidade e crueza, a falta de sentido a priori da existência. Basta olhar os romances de Dostoievski. Contudo, para enxergar a dobra da palavra, deve-se saber que “a verdade não se entrega a quem não a busca até ao delírio”[xxix].
Ora, é justamente neste âmbito, no qual transgressão e revolta se entrelaçam nas dobras do signo da arte que se pode falar de determinados movimentos estéticos e certos artistas. A partir da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, determinados movimentos estéticos surgiram como expoentes de uma atitude de revolta. Ou seja, determinados modelos de expressão artística
[xxx] foram capazes de se insurgir contra o jugo de uma realidade que aposta na minimização da conditio humanæ, na norma e no conformismo. Tais movimentos, em verdade, construíram um diálogo com o mundo, o qual, por se encontrar inapreensível ao homem, não dá respostas concretas. Neste diálogo, no lugar de se buscar uma raison d’étre para a existência do homem, um sentido a priori, efetivou-se, através da transgressão e recusa, uma denúncia do processo de extermínio da individualidade humana e a, concomitante, extinção de sua singularidade.
À vista disso, percebe-se que, a despeito das questões de gosto que envolvem a obra de arte, não foi raro percebermos que muitas das novas posturas morais ou éticas que se instauraram no decorrer destes cem anos sofreram demasiada influência destes movimentos de uma estética revoltada. Afinal, a expressão artística inserida como recusa, em sua ação transgressora não se apresentou tão somente como ‘mero’ reflexo ou representação de uma sociedade circunscrita em seu tempo; antes, a arte revoltada denotou, em sua atitude de transgressão, um modelo de ação capaz de denunciar a realidade imposta pela sociedade ocidental vigente que, além de acatar a miséria da condição humana, a tem valorado enquanto virtude e necessidade.
Destarte, a estética aqui pontuada apresenta-se como um movimento que engendra uma atitude ética no espaço político, que possui sua realização plena em um universo de representações que exprimem uma filosofia da experiência e do vivido. Em outros termos, opera-se uma ‘conversão estética’ na política, visto ser possível, através da arte, dar uma outra forma a este mundo insólito e corruptor. Com efeito, no desdobrar dos conteúdos estéticos, há uma tensão geradora do caos sensível, a qual, justamente pelo seu caráter tensional, acaba ressacralizando e ‘ressensualizando’ esta época em que o sujeito se encontra carente na minimização de sua conditio. Esta expressão estética é tanto modalizada quanto compassada, de modo a transformar-se, intimamente, na recusa lúcida que ‘des-oculta’ o indivíduo de seu sujeitamento. Talvez por esta razão mesma, a vida tenda, doravante, no seu eco de razão e de recusa, a estetizar-se cada vez mais.
Diante do exposto, certos artistas e determinados movimentos estéticos realizaram com maestria sua função transgressora e tentaram dar ao mundo um sentido que se oculta na normatização mecanicista da vida cotidiana. Apresentando-se como críticos da sociedade ocidental vigorante, esses artistas construíram suas obras artísticas para além da reflexão sobre o Real, não apenas representando as relações do homem com o mundo, mas também, e principalmente, traduzindo-as, questionando e, por vezes, as renovando. Dentre esses revoltados dos pincéis e das penas, alguns podem ser citados, como Rimbaud, Lautréamont, Oscar Wilde, Artaud, os Expressionistas e os Surrealistas, dentre outros.
Contudo, é importante salientar que, simultaneamente ao fato de se encontrar revoltada, este mesma arte engajada — a qual é objeto de recusa e transgressão — pode ser incorporada ao sistema que se ergue sobre os escombros dos antigos. Tal evento, decerto, acaba por fazer da atitude estética não mais denúncia transgressora, mas, isto sim, modelo de aceite e manipulação. Ou, esvaziada de qualquer conteúdo, obra de arte irrefletida. Em ambos os casos, a revolta estética perde seu caráter revoltado, sendo normatizada e normatizante.
[i] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op. Cit., pp. 316-317.
[ii] ARENDT, H. A Condição Humana. Op. Cit., p. 181.
[iii] Idem, ibidem.
[iv] Idem. Entre o Passado e o Futuro. Op. Cit., p. 263.
[v] Reificação significa, no processo de alienação, o momento em que a característica de ser uma “coisa” se torna típica da realidade objetiva. O termo é utilizado por marxistas como Lukács. A pesar de Hannah Arendt não ser marxista, ela se encontra situada dentro de uma linguagem de época, da qual, principalmente, seus amigos da escola de Frankfurt são partícipes.
[vi] GOMBRICH, E. H. História da Arte. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Círculo do Livro, 1972, p. 456.
[vii] Distingue-se, aqui, o “ver” como função do olho, do “olhar”, como objeto da função escópica. Se a luz se propaga em linha reta, ela também refrata, se difunde, inunda. Há diversidades essenciais que escapam ao campo da visão, não estando na linha reta, diz Lacan, mas no ponto luminoso, no ponto de irradiação, que também é o ponto de transbordamento da íris, descrita como uma taça. Tal efeito, grosso modo, tira o olhar do campo balizado pelo modelo cartesiano da visão, ou seja, arranca o olhar da consciência. O sujeito perde a noção do que vê. E o que vê se perde na indefinição causada pelo estilhaçamento luminoso; ou seja, se perde na indecibilidade do olhar. Por isso, o que se quer ver nunca está onde se olha. Nesse ponto a visão é dominada por uma espécie de cegueira luminosa em que o ato de ver perde toda a função ao submeter-se às investidas do desejo liberadas pelo olhar na função escópica.
[viii] Poema intitulado Mágica, de R.M. Rilke.
[ix] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op. Cit., p. 299.
[x] Cf. CURTIS, Kimberley F. Our Sense of the Real: Aesthetic Experience and Arendtian Politics. Op. Cit.
[xi] ‘Transcender no outro’ deve ser entendido como ter o outro por espelho de si mesmo, resguardando, contudo, este mesmo outro como singular. Cf. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Ademais, o sentido de transcendência aqui proposto está para fora de qualquer faculdade que dirija os objetos para fora do mundo. O transcendental referido é o sujeito a um empirismo superior. Cf. DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2006, Cap. 3.
[xii] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op. Cit., p. 293.
[xiii] DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, pp. 94.96.100.
[xiv] Para Deleuze, signos não devem ser entendidos como na afirmação lingüística de Ferdinand de Saussure, segundo o qual ‘signos são constituídos de um símbolo e pelo sinal, integrando a significação das formas lingüísticas e, assim, constituindo a essência da linguagem’. Deleuze é contrário à afirmação saussuriana do primado do significante sobre o significado. Para ele, signos são objetos de um aprendizado temporal e estão para ser decifrados. São estruturas específicas e constituem a matéria de diferentes mundos. Cada indivíduo, cada objeto isolado constitui um lugar próprio que o difere dos demais. Os signos forçam o pensamento e tiram-no de um pretenso lugar natural. Na gênese do ato de pensar está a violência dos signos sobre o pensamento que “são o que força o pensamento a pensar em seu exercício involuntário e inconsciente, isto é, transcendental”. MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 169.
[xv] Deleuze hierarquiza os signos desde os mais frívolos até os mais verdadeiros, aqueles capazes de apreender toda a essência e desvelar-se enquanto verdade. São quatro os mundos dos signos encontrados por Deleuze, o primeiro é o da mundanidade, depois os signos do Amor. O terceiro mundo dos signos é o das impressões ou qualidades sensíveis: são, segundo Deleuze, “signos materiais”, e dizem respeito à memória. Por fim, último mundo dos signos, aquele que apreende seu sentido numa essência ideal, o mundo da Arte.
[xvi] MACHADO, Roberto. Deleuze e a filosofia. Op.Cit., p. 176.
[xvii]DELEUZE, G. Proust e os Signos. Op. Cit., p. 41.
[xviii] Ibidem, p. 42.
[xix] DELEUZE, G. Proust e os Signos. Op. Cit., p. 42
[xx] Ibidem, p. 43.
[xxi] Entendendo recusa e negação não como renúncia, mas, contrariamente, como o primeiro passo para firmar-se a condição humana. Nega-se e recusa-se uma ordem, um sistema, uma ação, para se poder afirmar e assentir o fato de ser homem. Em outras palavras, a recusa e a negação, no sentido camusiano diz respeito a um prenúncio da própria afirmação.
[xxii] Uma postura ética baseada na questão aristotélica, isto é, voltada para uma virtude.
[xxiii] Causa é utilizada no mesmo sentido de Giambattista Vico, para quem, verdade e fato ou o verdadeiro e o feito são entendidos com sendo o mesmo; podendo um ser convertido no outro. Isto quer dizer que só pode ser conhecida de maneira indubitável aquilo que o próprio sujeito cognoscente faz, cria ou produz.
[xxiv] CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op. Cit., p. 291
[xxv] Em A Literatura e o Mal, Bataille analisa as obras de Emily Brontë, Baudelaire, Michelet, William Blacke, Sade, Proust, Kafka e Jean Genet. Parcialmente publicados na revista Critique, nos anos que se seguiram a Primeira Guerra Mundial, estes estudos oferecem o sentido que tinha a literatura para Bataille. Para ele, a literatura é comunicação, impondo tanto uma lealdade quanto uma moral rigorosa. Não é inocente. “A literatura é o essencial ou não é nada. O ma l — uma forma penetrante do Mal — de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano”.
[xxvi] Para Jean-Paul Sartre, por exemplo, os textos de Genet eram pistas para descobrir como um desclassificado, sem nenhuma tradição cultural, conseguiu produzir uma literatura tão complexa e bela, que o levou a ser considerado um dos maiores escritores da França.
[xxvii] CF. CAMUS, A. O Homem Revoltado. Op. Cit., p. 291.
[xxviii] Cf. FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[xxix] Cf. BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Santos. Porto Alegre: LP & M, 1989.
[xxx] Alguns autores costumam denominar muitos desses movimentos de vanguardas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Dalí: um artista da transgressão (Texto publicado em revista) por Georgia Amitrano



Pressupondo-se a que expressão artística seja uma estrutura de linguagem capaz de desempenhar uma determinada função criadora, que envolva não apenas a originalidade da expressão artística, mas também a originalidade das atitudes do homem no mundo, Salvador Dalí surge como aquele capaz de perceber que determinadas obras de arte são passíveis, entre outras coisas, de atuar para além da simples representação e criatividade pura, circunscrevendo, no estilo artístico, uma reflexão, mesmo que aparentemente afastada do real, e uma denúncia da miséria acerca da própria condição humana.

Como afirma Gilles Deleuze, arte é um signo maior que, contrapondo-se aos demais, explicita sua superioridade perante a materialidade dos signos que rodeiam o mundo do pensamento. Para tanto, deve ser compreendida como a “diferença última e absoluta”. Em outras palavras, como “diferença interna, diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença, que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós [...]” (DELEUZE, Gilles. Proust e os signos.1987, p. 42.).

A arte, desse modo, seria o único signo que comunica a verdade, pois sem ela não nos mostraríamos, não nos revelaríamos. Cabe salientar que arte não existe sem o artista, sem o qual ela nada seria. Nesse âmbito, pode-se olhar para uma atitude estética, ou seja, para uma atitude que, ante uma apropriação específica do real, se torna capaz de apresentar – e até mesmo construir – uma nova dimensão para o homem. Inscrevendo-se a partir de uma reflexão trágica acerca do mundo e da existência, busca-se, nessa atitude entendida como artística, direcionar o homem a uma nova forma de olhar e ausculta este mesmo mundo e o real. Isso se faz possível, justamente, por meio da transgressão à qual a obra estética está sujeita.

Essa transgressão, a que o artista está sujeito, poder-se-ia ser compreendida como um movimento que se abre ao “não-saber”, um êxtase e um erotismo, um modo de capturar ou, pelo menos, vislumbrar o impossível. Ressalte-se que o mundo exige formas de transgressão, pois onde há lei, enquanto forma de normatização, faz-se necessário transgredir e exacerbar. E não são poucas as formas de transgressão, das várias formas de vazão podemos salientar a embriaguez, o riso, o erotismo, a angústia e o sacrifício. Todavia, parece haver um modo mais espetacular e fantástico para se exacerbar, a saber, a arte. Ela aparece como expressão transgressora da norma justamente por levar o indivíduo a exceder seus limites e vislumbrar para além do possível, caminhando para o âmbito do imaginário e do onírico.

Diante do exposto, certos artistas e determinados movimentos estéticos realizaram com maestria sua função transgressora e tentaram dar ao mundo um sentido que se oculta na normatização mecanicista da vida cotidiana. Apresentando-se como críticos da sociedade ocidental vigente, esses artistas são merecedores de uma análise mais profunda, de modo a se poder ultrapassar a própria análise estética. Entre esses transgressores dos pincéis e das penas, cabe lembrar dos surrealistas e, em especial, de Salvador Dalí.

Com o lema “Mudar a vida e transformar o mundo!”, os surrealistas aparecem, insurgindo-se contra a “ordem” estabelecida, negando tudo o que mesquinha e avilta a condição humana. Foram audazes, justamente, por proclamarem a insubmissão a todas as normas estabelecidas, bem como por acatarem e pregarem a onipotência e superioridade do sonho e do inconsciente sobre o real. Do mesmo modo, romperam com as regras dos sentidos, enaltecendo a total falta de regras e, com ela, o próprio desregramento de todos os sentidos. Em outras palavras, proclamaram o poder do humano, daquilo que se presentifica em todas as formas de paixão.

Desse modo, percebe-se a razão pela qual o reconhecido racionalismo, estrito e estreito por definição, não pode apreender o surreal em sua plenitude. Principalmente, sendo o surrealismo considerado como o movimento de maior acusação contra a cisão, historicamente provocada pela modernidade, entre razão e paixão, liberdade e sonho.

Saliente-se que a temática surrealista não ficou pendurada nas galerias de grandes museus ou encadernada em coleções de luxo. Ao contrário, foi capaz de transcender os muros da própria normatização estética e filosófica, sendo abordada pelos principais filósofos da Escola de Frankfurt (como Marcuse, Fromm, Benjamin, Adorno, Horkheimer e Bloch) e por pensadores considerados não muito ortodoxos ou convencionais, como Albert Camus.

Mesmo com diferentes abordagens filosóficas, todos os que trataram da questão acabaram por propor um mesmo caminho para entender a temática surreal: o amor e a busca de uma “reerotização” da razão ou, em outras palavras, a busca por uma razão apaixonada.

Ora, o que se quer dizer é: para ser homem, não é possível deixar-se subjugar pelas normas de um mundo sistematizado e mediocrizante, mas, ao contrário, é preciso ser sabedor da necessidade de se insurgir contra as regras estabelecidas, transgredindo-as e, assim, criando uma nova ordem.

Nesse contexto, Dalí se insere. Suas pinturas não proclamam o irreal ou a falta de senso contra o humano, mas, ao contrário, estão apresentando o quanto a vida normatizada, padronizada e sistemática é irreal, violenta e sem graça. Logo, pode-se pensar que, por mais contraditório que pareça, tanto o surrealismo como a obra de Dalí são, na verdade, contrários a tudo o que tolhe o humano, ou seja, contra a maior de todas as violências: a falta de sentido da vida.

Seus quadros oníricos condensam todas as esperanças dos surrealistas numa nova era, num mundo transformado, onde o homem não se apresente mais na figura de um animal raivoso e homicida, que apenas se reconhece minimizando seu semelhante ou lutando contra ele. Na civilização surrealista, na sociedade do futuro, o homem, por meio do amor e do sonho, encontraria finalmente a plenitude da harmonia com o mundo, ou seja, sua verdadeira razão de viver.

Poder-se-ia chamar Dalí de um “filósofo de última hora”, já que ele tenta buscar uma saída de acesso ao mundo, a qual estaria, justamente, no acesso à magia e no reencantamento desse mesmo mundo. Todavia, parece que essa magia e esse reencantamento são privilégios de poucos, ou melhor, pertencem ao artista, visto ser ele que – por intermédio dos sonhos, do amor louco, do escândalo, da ida ao encontro do acaso objetivo, da disponibilidade para o humano – sempre transgride as normas do mundo, criando e construindo um novo modo de olhar para esse mesmo mundo, dando-lhe, assim, uma nova forma, um outro discurso.

A pintura de Dalí, então, poderia ser compreendida como sendo o fruto de um encontro entre a paixão, o amor louco e a poesia, em que o acaso e o onírico se entrelaçam, dando um contorno e uma cor diferente à realidade humana, que aparece tão medíocre na visão do artista.

Assim, pode-se dizer que, longe do que pensam alguns “críticos”, o surrealismo e a pintura de Dalí nada têm de “irrealismo”. Ao contrário, são a busca intransigente de uma supra-realidade. Seu ponto de partida é o próprio cerne do que há de mais elevado e sublime no coração de cada ser humano. Certo ou errado, não podemos nos furtar em dizer que esse poeta/pintor do sonho e da loucura superou tensões e quebrou as máscaras que a sociedade normatizada e sistemática costuma utilizar e tenta impor aos demais. Dalí, tanto na sua vida como na sua obra, busca atingir e expressar a transparência do homem por meio do sonho, da beleza da mulher, da certeza do prazer, ou seja, da “glória de ser homem”.

Essa promessa de felicidade é um atentado vivo ao “princípio de desempenho” da sociedade afluente, como bem lembra Herbert Marcuse em Eros e civilização. O amor louco deve ser recíproco e único, e as escolhas infelizes que, por vezes, fazemos devem-se, sobretudo, às condições sociais sórdidas em que nos encontramos, nas quais vemos nossa liberdade brutalmente tolhida e cerceada.

Amar é o mesmo que transformar a vida, e essa transformação é realizada na pintura de Dalí, como se ele escrevesse uma poesia em cores. Seus quadros são poemas apaixonados, que nada têm de piegas ou sentimentalista, ao contrário, existe na poesia/pintura de Dalí uma insurreição surreal contra o real, insurreição que se dá a partir da transformação, exacerbação e transgressão.




ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo I. a X. Paris: Gallimard, 1970.

_____ . História do olho. Tradução de Glória Correia Ramos. São Paulo: Escrita, 1981.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1996.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antônio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

_____. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998.

LANGER, Susanne K. Sentimento e forma. Tradução de Ana Maria Goldberger Coelho e J. Ginsburg. São Paulo: Perspectiva, 1980. (Série Estudos).

MARCUSE, Herbert. Art as Form of Reality. New Left Review, n. 74, 1972.

_____. Razão e revolução. Tradução de Marília Barroso. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

PONGE, Robert (Org.). Aspectos do surrealismo. In: Organon 22. Porto Alegre: UFRGS, 1994. (Volume 8).