domingo, 4 de outubro de 2009

PARA ALÉM DE ROSA: IDEOLOGIA COMO PESADELO OU FIM DE UM ‘SONHO UTÓPICO’ (Artigo apresentado por ocasião do III Krisis-2009)


A Rosa vermelha agora também desapareceu

Onde se encontra é desconhecido

Porque ela aos pobres a verdade há dito

Os ricos do mundo a extinguiram

(Escreveu Bertold Brecht aos vinte um anos)



A última década é marcada por conflitos que fazem crer que aquela ideia de terror incitado pela guerra fria tenha sido, infelizmente, superada por um outro ainda mais cruel. É diante desta feita que questões filosóficas tais como a violência, o agir ético e/ou a existência humana ganham novo fôlego. O fazer filosófico, assim, parece hoje emergir da necessidade de nos desdobrarmos sobre velhos problemas em busca de novas respostas. E é justamente nesse sentido que parece claro afirmar hoje que já se foi o tempo no qual falar de Filosofia Política poderia ser uma questão simplesmente da apreciação de autores; ou mesmo, uma questão dentro da própria História da Filosofia.

Em uma análise simplista, podemos afirmar que desde a virada do século XIX para o XX urge no pensamento a necessidade de estarmos inseridos nos eventos que nos circundam. Não somos espectadores que apreciam o espetáculo de outrem. Ao contrário, somos nós os atores principais da Ópera ainda em construção. Em suma, neste fazer filosófico contemporâneo não podemos aparecer como indivíduos observadores de uma “imagem” invertida ou fantasmática do mundo, das coisas e de si mesmos; distanciados do mundo como se no mundo não estivéssemos lançados. A filosofia que espreitamos e buscamos construir é a da vivência; afinal é na vivência, naquilo que é experienciado, que a existência humana em suas diferentes possibilidades emerge. Tratemos, então, de uma questão de fôlego para o existir humano no cenário político-filosófico contemporâneo.

Ora, o século é o XXI e o ano 2009 e, nestes, dois eventos nos perturbam a memória: (i) por um lado, na mais recente história, deparamo-nos com os vinte anos da Queda do Muro de Berlim; (ii) por outro, não tão recente assim, homenageamos os noventa anos do assassinato de Rosa Luxemburgo. A pergunta que fica talvez seja: O que estes dois eventos do século XX possuem em comum hoje? Rosa é assassinada por querer construir um Socialismo livre. Para ela, “as massas devem aprender a exercer o poder no próprio exercício do poder; não existe nenhuma outra forma de lhes ensinar essa arte”. Seu legado político consiste na noção de que a vida pública ativa, fundada no debate e na liberdade de expressão, é fundamental para o sucesso de qualquer projeto revolucionário. O Muro construído em 1961 para consagrar a separação entre as duas Alemanhas – Oriental e Ocidental – e também entre duas Europas, se torna um dos principais monumentos da Revolução Socialista/Comunista. Contudo, sua queda reflete não mais as aspirações marxistas de uma nova e ‘positiva’ configuração econômica e social, mas antes, a realização de um sonho reprimido por quase 30 anos. Em comum, ambos os eventos apontam para o extraordinário do tempo em que vivemos, o qual, como afirmara Rosa, em 1906, é um tempo extraordinário justamente por propor “problemas enormes e espoliar o pensamento”, um tempo “que suscita a crítica, a ironia e a profundidade, que estimula as paixões e, antes de tudo, um tempo frutífero, prenhe”. É um tempo de transições, no qual um mundo velho parece ter sido engolfado e outro surge dos escombros das diferentes guerras. Entretanto, esse novo mundo não emergiu da liberdade, apesar dela ter se apropriado o termo; de fato, o que vimos e vemos, no compasso do pré-soerguimento e da queda do Muro de Berlim, se encontra na urgência das palavras de Rosa: “Socialismo ou Barbárie”? Ou melhor, poderíamos hoje perguntar, “Civilização ou Barbárie”?

Somos cientes que o termo barbárie em sua essência não contempla hoje as relações entre indivíduos ao longo do planeta. Afinal, bárbaro, tal qual fora entendido pelos gregos, era o ‘estrangeiro’; o não civilizado; aquele que não detinha o logos no fazer político; o que se utilizava da força para alcançar o poder. Hoje me parece que não estamos tão distante dos gregos; ao termo ‘barbárie’ denota-se um estado ou uma condição de bárbaro, ou seja, um grau de crueldade, desumanidade e tirania. Ora, podemos nos considerar o ápice da civilização humana — pelo menos, assim, afirmam antropólogos, cientistas sociais e filósofos —; contudo, as relações estabelecidas no último século construíram um novo modelo de barbárie. Neste, não apenas se inclui a noção de civilização, como também se retoma a presença do estrangeiro, o qual, todavia, não apenas aparece capacitado para executar ações cruéis, mas antes, é tomado como aquele que deve ser excluído pela crueldade. Em outras palavras, surge, no último século, um novo arquétipo do barbarismo, a saber: a ‘barbárie moderna’, a qual constitui um modelo de exclusão em que um limite é transgredido e em que um outro nível é atingido. Nesse momento, vale frisar, a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu Êthos, de sua ideologia, de seus meios e de sua estrutura burocrática. Aliado à nova barbárie, parece que também vemos surgir uma nova espécie de homem; um modelo de homem cuja vida é pautada na hostilidade para com o Outro: nasce o Homo hostilis.

De fato, nos últimos 150 anos, a razão humana — tal qual fora vislumbrada no século das Luzes e pela Revolução Francesa —, a racionalidade dos fins últimos e dos valores irrigados pelos sentimentos e pelas paixões, tal como nos ensinaram Kant e Goethe não triunfou. E, de modo mais evidente ainda, ao longo de todo o século XX, o que despertou o homem parece ter sido a racionalidade desfigurada e restrita, a qual — no lugar de um ‘estado de natureza’ como apregoado por Hobbes — edificou, isto sim, um modelo que se pretende natural, mas não o é. Este arquétipo de homem erige-se em bases artificiais, cuja legitimação verifica-se no aparato jurídico-científico que emerge pós a iluminação moderna.

Sinaliza-se aqui, portanto, para um advento que decorre de uma forma de pensamento e de um estilo de ação perversos, cujas bases acabam convergindo de forma controversa com um estado humano já apresentado por Thomas Hobbes no Leviatã, no qual o homem se torna o Homo homini lupus.

O advento apontado, portanto, não mais diz respeito ao ‘estado de natureza’ apresentado por Hobbes, no qual o Homo homini lupus existe por não haver um poder regulador capaz de manter o controle sobre as ações humanas. O Homo hostilis, proposto por mim, deriva justamente da construção de um poder regulador, o qual, no lugar de tirar o homem de sua solidão, o coloca enclausurado dentro de um sistema jurídico que, respaldado na legitimação social e científica, cria um estado artificial de ‘natureza humana’. Tal natureza permite que um indivíduo hostilize — desconsiderando o outro como sujeito — aquele que em seu aparato jurídico-científico não se consagra como humano. Os diferentes modelos políticos contemporâneos parecem se utilizar muito bem deste aparato jurídico-científico na busca da consagração de suas Soberanias.

À vista do exposto, voltemos à Rosa Luxemburgo. Afirma Rosa que o socialismo não é e não será inaugurado por decreto; ou seja, não pode ser estabelecido por um governo, mas, isto sim, o socialismo deve ser criado pelas massas. Ora, tal afirmação, dentre outras coisas, remete-nos aos vinte anos passados da queda do Muro de Berlim; melhor, insere-nos diante do fim de um ‘sonho utópico’ ou de um ‘pesadelo ideológico’; lembrando que, afinal, a ideologia emergida da torrente ‘comunista’ se fez, como toda a ideologia, obstáculo da consciência para a autonomia e emancipação. Mas, será que o fim da ideologia comunista pôs um ponto final nas estruturas de poder pautadas na coerção? Há, de fato, um ponto limítrofe na existência do referido Homo hostilis; ou dela emerge um novo modelo coercitivo que nos mantém no mesmo paradigma ideológico vinculado às diferentes formas hostilidade e de minimização da condição humana?

Ora, como aludido, vivenciamos um tempo extraordinário, o qual, justamente por propor “problemas enormes e espoliar o pensamento”, suscita sua crítica Neste tempo, parece que nos fechamos na armadilha foucaultiana; isto é, na inversão da proposição de Clausewitz, deparamo-nos com a política sendo a guerra continuada por outros meios. O Homo hostilis, assim, não se perde no princípio de sua existência; antes, parece perpetrado nas relações de força e poder que elegem amigos e inimigos nos confrontos inaugurados ao fim do século XX e nesta primeira década do XXI.

Diante deste quadro, a ação política, como a guerra desencadeada nesta e por meio desta ação, emerge da modalidade normativa das tensões existentes. Em outros termos, é da inimizade, como “negação ontológica de outro ser” que ela existe. Desta feita, podemos afirmar que, enquanto permanecer a idéia de inimigo, a guerra não deve ser rejeitada. Contudo, a guerra aqui pontuada não possui o caráter único de uma ação militar ou bélica, imperialista ou pacificista; antes, como alude Schmitt, “deve ser vista como pressuposto sempre presente, como possibilidade real a determinar o agir e o pensar do sujeito social para a emergência do comportamento político”. À vista disso, é justamente em face dessa possibilidade real que a vida adquire uma tensão especificamente política.

Sendo a vida um fato político, então, também político é o conceito de homem. Outra vez é Foucault que nos chama a atenção; afinal, o homem não é mais aquilo que dele pensava Aristóteles, “um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”[2]. O homem, portanto, é um animal vivo cuja vida é constantemente questionada, não importando o que ele faça.

Ora, seguindo o rastro de Schmitt, toda unidade política prevê a existência de um inimigo e, por esta razão mesma, também prevê a existência de um amigo. Em outros termos, o que está em jogo ainda é a presença do homem, porém esse é sempre um Outro. Mais legitimamente, é o homem que emerge do fato político, haja vista a humanidade[3], como alguns advogam, não ser um conceito político e a ele não corresponder nenhuma unidade política. É nesse sentido que o conceito de humanidade aparece não como caráter universal, mas, isto sim, como um “instrumento ideológico”, especialmente útil para discursos de ordem imperialista e/ou totalitária. Permanecem, assim, os dizeres de Proudhon, que afirma: “quem diz humanidade, pretende enganar”.

Mais uma vez as palavras de Rosa ecoam e nos despertam para o extraordinário do tempo. Tempo este nosso que apregoa a exclusão, a exceção em nome da ideologia humanitária. A guerra continua e a queda do Muro não cessou nem a Ideologia nem a violência, paradigmas de nossa era. O Homo hostilis é quem impera.

No seio desta evidência incômoda, na qual são participes os mecanismos políticos de controle sobre a vida e a redução desta a sua mínima parte, é válido observar dois aspectos dessa nossa nova era: (i) por um lado, há o caráter hostil com que o homem se relaciona para com seu outro; (ii) contudo, por outro lado, esta mesma hostilidade cria uma sensação também de acolhimento. É sempre ao outro que nos referimos. A esse direito de hostilizar e hospedar outrem. Destarte, é fato que na gênese dessas duas palavras, a de hospedar e hostilizar, encontramos o mesmo radical: host, o hospedeiro, o generoso, distribuidor da hospitalidade. Poder-se-ia dizer daquele com quem se mantêm obrigações recíprocas de hospitalidade. Disto deriva a sensação do acolhimento.

Contudo, hóspede e hospedeiro visitam-se. Um não existe sem o outro. Um hospedeiro é uma hóstia, a vítima oferecida em sacrifício que, posteriormente, tornou-se o pão consagrado, o corpo do Cristo na eucaristia. Em suma, uma oferenda, um pão a ser engolido. O Host, portanto, como hospedeiro é, simultaneamente, tanto o que alimenta como aquele que serve de alimento. O que oferta e o que é ofertado. E aquilo a que se oferta pode ser algo benigno ou maligno, tanto quanto o hóspede pode ser um amigo ou um inimigo (ou um parasita).

Ora, o radical host também está na raiz de hostil: o contrário, o adverso, o inimigo. Nesse sentido, hostilidade parece ser o exato oposto de hospitalidade, na medida em que hostilizar é tratar o outro como inimigo. Host, hospedeiro e hóstia, também é a raiz de hoste, o inimigo. No interior de host, portanto, há esse sentido antitético do familiar e íntimo e do estranho e estrangeiro. Logo, o termo hostilidade guarda a mesma relação interna que hospitalidade, ao opor-se-lhe: hostilizar é combater-se, agredir-se mutuamente. O hospedeiro não mais se oferece ao outro, mas volta-se contra si mesmo na figura de seu espelho. O outro emerge assim, como não apenas o estrangeiro, mas como aquele que é o outro absoluto.

O Homo hostilis, desse modo, aparece como um conceito amparado em sua própria antítese. Sua significação e valor são dados na contraposição de seus contrários. O ser doravante hostilizado encontra seu par antitético na relatividade à mensagem do Outro que se impõe, e isso de forma imperativa, como uma ordem, uma Lei. Hospitalidade e hostilidade se tornam relativas diante do par amigo-inimigo.

Há vista disso, voltemo-nos para Derrida, para quem:

A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, perversível ou pervertora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a lei da hospitalidade como direito ou dever, com o “pacto” da hospitalidade[4].

É a Lei, podemos afirmar, quem hospeda e hostiliza. Acolhe e mata. Afinal, existe uma autoridade, uma força legítima que permite, ‘no ápice hegeliano do progresso da humanidade’, a exclusão de outrem. Há sempre um inimigo, há sempre a “negação ontológica de outro”. E, apesar de primariamente, o reconhecimento do outro como inimigo trazer consigo a ideia de que este representa a encarnação de um mal, devendo, por essa razão mesma ser eliminado, também, e principalmente, o que se verifica nesta negação contemporânea do Outro é o fato deste inimigo não aparecer como um inimigo privado, inimicus, mas, isto sim, ele representar um inimigo público (hostis) e, por isso mesmo, passível de eliminação. Este inimigo, como frisa Carl Schmitt, é o “estrangeiro”.

O que se verifica na negação Legal do outro, desse entendimento formal deste como “estrangeiro”, é a existência de certo privilégio. Afinal, o reconhecimento do outro na sua qualificação de estrangeiro e de inimigo — que nos obriga a acolher a ideia da existência de uma tensão constante, bem como a possibilidade sempre latente da eliminação física desse outro — é, sem dúvida, uma espécie status; e isso devido ao fato de que determinado Estado, na possibilidade legal de garantia de sua identidade e Soberania, pode eliminar esse outro de modo legítimo e, por que não, ‘moral’ (Afinal, está dentro da Lei). Em outras palavras, elimina-se o outro dado este ter sua condição humana minimizada. Ora, a redução desse outro à sua mínima parte faz, como afirma Giorgio Agamben, com que possamos matar sem cometer assassinato. Aponta-se, portanto, para o fato de haver “um limiar além do qual a vida cessa de ter valor jurídico e pode, portanto, ser morta, sem que se cometa homicídio”[5].

De fato, vivenciamos nestes últimos vinte anos, o auge do pensamento da exclusão. É um momento propriamente poético do pensamento, afirma Agamben, donde o termo “estado de exceção” parece a terminologia mais adequada, haja vista este não emergir de um direito especial, mas, isto sim, da suspensão da própria ordem jurídica[6]. Suspensão esta que permite a supressão dos direitos individuais mais simples. Há no mundo, nos últimos vinte anos, certos tipos de homens, capazes de estar ou não inclusos nos diferentes conjuntos montados no espaço da lei nos Estados.

Como dissera Hannah Arendt

A concepção dos direitos do homem, baseada na suposta existência de um ser humano como tal, caiu em ruínas logo aqueles que a professavam encontraram-se pela primeira vez diante de homens que haviam perdido toda e qualquer qualidade e relação específica — exceto o puro fato de serem humanos[7].

Com a minimização da Condição Humana; isto é, com a redução do homem a sua mínima parte, sua Zoé (vida nua) parece que vemos o século XX limitado em datas não cronologicamente estruturadas com a abertura e o fechamento de um século, mas, isto sim, com eventos marcadamente espetaculares e incômodos que nos dão imagens de ‘pesadelos dogmáticos’ ou de ‘sonhos utópicos’: a Primeira Grande Guerra e a Queda do Muro de Berlim. Um século marcado pelo terror finge extinguir-se na abertura dos sonhos de um admirável mundo novo. O muro caiu e o século findou; entrementes, na esteira do novo milênio, o que se verifica mais uma vez é o terror. Agora, mais acentuado, mais cruel e legitimado.

Ora, a questão que permeia a noção de terror e as práticas que implementam um sentido moderno à barbárie já citada são inauguradas com o advento da I Grande Guerra e todo o seu entorno. E é Rosa Luxemburgo que intuiu que alguma coisa sem precedente estava por vir no curso daquela guerra.

É Rosa, ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie[8] — em A crise da social-democracia, de 1915 — quem rompe com a concepção de que a história aparece como um progresso irresistível, inevitável e ‘garantido’ pelas leis ‘objetivas’ do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Este termo implica a percepção da história como processo aberto, isto é, como uma série de bifurcações, no qual o “fator subjetivo” — consciência, organização, iniciativa — dos oprimidos torna-se decisivo. Não se trata mais de esperar que o fruto amadureça, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais. Decerto, a outra alternativa é um sinistro perigo: a barbárie.

Em princípio podemos pensar que esta alternativa perigosa é um retrocesso, a “recaída na barbárie” como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga àquela da Roma antiga[9] . Contudo, não se trata de uma impossível ‘regressão’ a um passado tribal, primitivo ou ‘selvagem’; antes, a barbárie que se evidencia é eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina que as práticas guerreiras dos conquistadores ‘bárbaros’ do fim do Império Romano. Jamais havia se visto o uso de tecnologias tão modernas — os tanques, o gás, a aviação militar — colocadas ao serviço de uma política de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.

Rosa recusava categoricamente, do princípio ao fim, em ver na guerra outra coisa senão a mais terrível catástrofe, sem importar qual fosse seu resultado final; o preço de vidas humanas [...] seria alto demais sob quaisquer circunstâncias[10].

Infelizmente, em tempos de século XXI, é a barbárie civilizatória que parece imperar. E a filosofia deve se preocupar em pensar o que dizer deste novo e grandioso problema. Afinal, as algias de hoje, cujos nascimentos se deram em 11 de setembro de 2001, tiveram sua fecundação com a queda do Muro de Berlim. Resta-nos saber se ainda podemos filosofar.

Uma filosofia capaz de servir par tudo, até mesmo “transformar assassinos em Juízes”, como afirmara Camus, pode, então, ser algo mais que “a simples arte de formar, de inventar ou de fabricar conceitos [...]. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”[11]. Em outras palavras, é preciso olhar para problemas em busca da lucidez de um novo sol.

E, parece não haver nada novo sob o sol a não ser a progressiva e intensa concorrência, um voo ascendente que galga degraus cada vez mais altos na hostilidade para com o outro. Contudo, mesmo não aparecendo nada sob o sol, há um sol que ainda brilha, cega e elucida, como diria Camus. A guerra não cessa, e agora é menos sutil e mais violenta. E isso não pelo arcabouço bélico que traz consigo — ainda vivenciamos, dizem, a ‘guerra convencional’—; antes o que se vê são os mísseis que calam a agonia e a dor impessoalizada nos pontos brilhantes das telas de TV. A guerra, escrevera Clausewitz, “não pertence ao domínio das artes e das ciências, mas sim ao da existência social [...] Seria melhor compará-la, mais do que a qualquer arte, ao comércio, que também é um conflito de interesses e de atividades humanas”[12]. E neste conflito de interesses as palavras de Rosa ficam para marcar nossa memória: “Liberdade é sempre também a liberdade de quem discorda de nós”. O Outro não perde seu lugar; afinal, “o terror [como dissera Albert Camus] é a homenagem que solitários rancorosos acabam rendendo à fraternidade dos homens”. Se há uma palavra de ordem, esta é alteridade.

Ora, Rosa Luxemburgo viveu e morreu em nosso tempo, que é um tempo ainda de transição. Seus companheiros construíram aquilo que chamamos de socialismo, seus assassinos e inimigos ajudaram Adolf Hitler a subir ao poder. No compasso dessa história, o Muro da ideologia utópica e também assassina ruiu, o Füher suicidou-se na decadência de seu império e, o que fica é ainda a certeza de que há um outro que pode vir a ser meu inimigo. Por esta razão mesma, devo eliminá-lo. O inimigo é sempre Outro. Luta-se agora contra o bloco fundamentalista islâmico, contra o mundo árabe e talibãs terroristas. Não mais a foice e o martelo que preenchiam a bandeira vermelha do comunismo. Entretanto, em um olhar não muito profundo, verifica-se o mesmo cinismo que executou Rosa e levantou o Muro de Berlim: a arrogância do poder que, na bela imagem de Baudrillard, “chora por si mesmo ao mesmo tempo que se é o mais forte”[13]. A violência é sempre devastadora; mas oculta a olhos que não são acostumados a enxergar. Não há como se comover com o que não se percebe claramente.

Em tempos de extraordinário, são os “civilizados” quem têm um mundo a perder. O outro é sempre um outro que me espelha e que, justamente por ser espelho, pode ter sua vida reduzida, minimizada e hostilizada à mera condição de vida. Nos resta, no paradigmático e extraordinário de nosso tempo, lembrar, como dissera Levinas, “a relação com o outrem —isto é, a justiça” emerge como “direiteza do acolhimento feita ao rosto”[14]. Não uma direiteza como direito, afirma Derrida; mas, isto sim, como “a extensão do direito de outrem”[15].

“Ao todo, foram apenas tijolos no muro” — All in all it was all just bricks in the wall —, diz a letra da música, e um mar de coroas e cravos vermelhos. E o que fica ainda são as palavras na lápide de Rosa: “Os mortos nos exortam”.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

______. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

______. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

BAUDRILLARD, J. Power Inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.

CLAUSEWITZ, C. von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Que é aFilosofia ? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.

______. Força de Lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: Vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003

LEVINAS, Emmanuel. Totalité et Infini, “Verité et Justice”, Nijhof, 1962.

LUXEMBURGO, R. A crise da social-democracia, 1915.

[1] Cf.Hobbes, Leviatã: “Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. [...] tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. […] O resultado dessa situação geral é que a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”. HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza e Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Clássicos Cambrigde de Filosofia Política), cap. XIII (Da condição natural da Humanidade relativamente à sua felicidade e miséria).

[2] FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: Vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006, p. 156.

[3] O conceito humanitário de humanidade, do século XVIII, era uma negação polêmica da ordem aristocrático-feudal ou estamental então existente e de seus privilégios.

[4] DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade. São Paulo, Escuta, 2003. p. 23

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 146.

[6] Cf. Agamben. Estado de Exceção. p.15.

[7] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.. p.229.

[8] Apesar de o termo ser sugerido por certos textos de Marx ou de Engels, é com Rosa que essa formulação se torna explícita e elaborada.

[9] LUXEMBURGO, R. A crise da social-democracia, 1915.

[10] ARENDT, Hannah. Homens em Tempos Sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 54.

[11] DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O Que é aFilosofia ? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 13

[12] CLAUSEWITZ, C. von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 127.

[13] BAUDRILLARD, J. Power Inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.

[14] Cf. LEVINAS, Emmanuel. Totalité et Infini, “Verité et Justice”, Nijhof, 1962.

[15]DERRIDA, Jacques. Força de Lei. São Paulo, Martins Fontes, 2007. p.42.